Entrevista
com Joyce Cavalccante
A
romancista,
fundadora e atual presidente da
REBRA-Rede de Escritoras Brasileiras, foi entrevistada
pela Palavrarte (www.palavrarte.com)
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1.
Como surgiu a idéia da Rebra?
JC - Surgiu quando estávamos
em pleno "Premier Encuentro Internacional de Escritoras",
e era agosto de 98 numa bela cidade argentina chamada
Rosário. Foi justamente lá onde nasceu Che Guevara.
Acho que a simples evocação desse nome me fez mais valente
para gerar essa inspiração.
Uns seis meses antes
já havia sido fundada a "RELAT- Rede de Escritoras Latino-americanas",
organização da qual sou uma das diretoras. Era de tarde
e eu escutava os queixumes de Mariela Sala, escritora
peruana e a presidente da RELAT, de como era difícil
a comunicação com o Brasil por causa da língua diversa
e por causa do exotismo de nosso comportamento. Daí
eu juntei os pés e disse: Está bem. Vou fundar uma rede
de escritoras brasileiras para fazer a interface com
a RELAT e demais redes que se fizer necessário.
Quem não me conhecia
não se espantou por não considerar que eu estivesse
falando sério. E quem me conhecia também não se espantou,
pois já sabiam que não poupo nenhum esforço quando creio.
Estava do meu lado a poeta gaúcha Milena Weber, que
não me deixa mentir.
2.
E para colocar a idéia em prática, o que foi preciso?
JC- Daí mal cheguei de
volta ao Brasil já fui procurando advogado para escrever
os estatutos e tomando outras providências. Eu não tinha
a mínima idéia de como eu ia fazer mas eu sabia que
ia fazer. Não foi preciso muita coisa além de muita
boa vontade e um pouquinho de determinação. Em 8 de
março de 1999 a REBRA estava em pleno emprego, tendo
sido sua primeira ata assinada pela professora doutora
Kátia Abud Lopes, pela psicóloga e contista Sabine Cavalccante
e por mim. Hoje, 30 de maio de 2003, já somamos 1.040
associadas a esse ideal.
3.
E por que " homem não entra"?
JC - A quem me faz essa
pergunta -e são muitos- eu peço que visite o nosso site:
http://rebra.org. Lá
ficará sabendo que a nossa organização, a REBRA, já
nasceu em parceria com duas outras organizações análogas,
a WWORLD e a RELAT, respectivamente, mundial e latino-americana.
Se a intenção é divulgar a literatura das mulheres brasileiras,
só isso aí já é uma vantagem suficiente para nos justificar.
Porém, tem muito mais nesse mundo. Só quem não nasceu
mulher não pode reconhecer -e nem é obrigado- que mulher
quando ganha, empata. É muito duro, ainda, a desigualdade
de oportunidades para homens e mulheres, infelizmente.
E o pior é que tudo isso é tão costumeiro que muitos
acreditam que estou exagerando. Mas não estou. Precisamos
dessa luta provisória visando uma sociedade justa. Equilibrada.
Quando um dia homens e mulheres e todos os outros opostos
tiverem igualdade de oportunidades, todas essas providências
cairão em desuso, inclusive a REBRA, que passará a ser
História. Por isso homens não entram. Se entrassem tudo
ficaria como antes: eles como a substância e nós como
a cereja do pudim.
4.
As mulheres sofrem algum tipo de discriminação ainda
hoje?
JC - Porque na realidade
as mulheres são consideradas, até por si mesmas, cidadãs
de segunda categoria. Se conformam com o mínimo de participação/gratificação
e fingem que tudo está bem. Guardam esse comportamento
em nome da paz ou com medo de perder o emprego, o status
ou mesmo o sossego. Na verdade conquistamos muito pouca
coisa. A maioria de nossos direitos a igualdade foram-nos
outorgados pelo sistema machista, ou seja, tudo que
está ai. Mas os homens não têm nada ver com isso.
As conquistas sociais que nos faltam devem vir de nossa
consciência, de nosso esforço. Não é preciso luta, é
preciso atitude.
5.
O que é mais importante na Rebra?
JC - Tudo e mais alguma
coisa já que não temos nada. É importante unir, aglomerar
as escritoras de nosso país. É importante praticar,
a partir daí, a solidariedade. É importante alargar,
cada dia mais, as oportunidades, para que cada uma ache
seu jeito próprio de brilhar.
6.
Quais foram as grandes vitórias da Rebra?
JC - O dia-a-dia é nossa
maior vitória. Cada vez que chega uma nova inscrição
é uma vitória. É sinal que alguém confiou na gente.
É uma luz a mais. Porém já temos coisas a listar como
gratificação de nosso trabalho. Nossa admissão como
entidade membro do "Conselho Nacional de Incentivo a
Cultura", do MINC. Nossa participação com estandes na
"Feira Internacional de Livros" em Gijón, na Espanha.
E finalmente o SER-Selo Editorial REBRA, iniciativa
que facilita muito a publicação de livros por parte
de nossas autoras associadas.
7.
Ela tem cumprido o que se propôs, ou conseguiu ir além?
JC - A nossa pretensão é muito grande. Por isso jamais
a REBRA irá além daquilo a que se propôs. A REBRA foi
concebida sem espaço para limites. Temos cumprido nossas
metas formais, mas nunca satisfazendo o tamanho de nossos
sonhos.
8.
Como foi que você iniciou sua carreira de escritora?
Quando você percebeu que ia escrever mesmo?
JC - Isso eu gosto de
contar. Obrigada por ter perguntado: Eu tinha por volta
de uns cinco anos de idade quando me permitiram fazer,
sem ajuda, as pontas do meus lápis. Naquele tempo se
usava giletes. Não me lembro de apontadores ainda. Pois
foi nesse momento que a consciência de ser uma escritora
nasceu e me acompanha desde então: foi quando fiz a
primeira ponta de lápis e senti o cheiro da madeira
vermelha e perfumada, que se chamava pau-brasil. Foi
uma emoção sensual e movida por ela eu passei a ter
prazer escrevendo. Depois, a mesma sensação de formigamento
foi sentida pela caneta Parker azul-marinho que ganhei
de presente do meu pai quando passei no exame de admissão
ao ginásio. Depois, ganhei uma máquina de escrever do
pai de minhas filhas e desandei a usá-la. Nela martelei
quatro dos meus sete livros. Guardo até hoje esse chamego
pelo meu computador que, anos depois, substituiu o lápis,
a caneta e a máquina. Eu tenho amor físico pelos meus
instrumentos de escrita, não é estranho?
E as coisas foram acontecendo
uma atrás da outra. Sem que eu notasse foram convergindo.
Nunca me esforcei para escrever. Apenas assisto as letras
se unirem em palavras e as palavras em narração. Tudo
muito naturalmente. Assim como o peixe não se esforça
para nadar, apenas nada; assim como ninguém nunca ensinou
a grama a crescer, e ela cresce. É assim que tudo acontece
no meu criar, e não poderia ser de outra forma.
9.
Como foi mudar para São Paulo? Você enfrentou algum
preconceito por ser mulher e nordestina?
JC - Escapei de sofrer
preconceito por ser nordestina devido a meu tipo físico.
Por causa de minha aparência européia eu escapei até
do preconceito de ser brasileira, quando morava nos
Estados Unidos. Mas do preconceito por ser mulher nunca
escaparei, embora eu seja uma das mulheres mais atrevidas
que eu conheço. É uma luta diária e o inimigo é sutil.
Vale um tratado que aqui não cabe. Mas tudo que já se
escreveu sobre o preconceito sofrido pelas mulheres
é insuficiente, resumo.
Mudar para São Paulo
foi coisa de destino. Minha literatura precisava respirar
e aqui encontrou o seu oxigênio. Eu seria bem menor
se não tivesse usufruído esses 23 anos de vida nessa
cidade minha já. Meu romance mais recente, "O Cão Chupando
Manga", que se passa aqui, é um monumento, uma homenagem
e um hino a essa megalópole.
10.
Cite seus autores preferidos. Os livros de cabeceira.
JC - Dou preferência
aos romancistas já que sou um deles. Eu gosto muito
de Clarice Lispector. Ela me comove. Leio e releio Érico
Veríssimo; Domingos Olympio, cearense autor de "Luzia
Homem"; Rachel de Queiroz e Machado de Assis, claro.
"O Cheiro de Deus"de Roberto Drumond é um primor. Na
poesia Gilka Machado e Cecília Meireles. Meu Deus são
tantos. Se eu fosse para uma ilha deserta levaria a
"Arte de Amar" de Ovídio, traduzido para o português
pela poeta lusitana Natália Correa. Hemingway, Fitzgerald,
Balzac, Proust, Proust e Proust. Virgínia Wolf, Tom
Wolf, Catherine Mansfield - a melhor contista do mundo.
Mas eu não sou dada a
luxos. Leio de tudo, e o meu livro de cabeceira é aquele
com o qual me esbaldo. Leio em média uns dois livros
por semana.
11.
Fale dos seus livros e do tempo que você morou nos USA.
JC - Uma coisa é uma
coisa, outra coisa é outra coisa. Vou falar de meus
livros portanto.
Minha obra hoje se compõe
de sete livros publicados. Os dois primeiros são os
romances "De Dentro para Fora" e "Costela de Eva". Olho
para o primeiro com uma certa estranheza. Nunca acreditei
que tivesse sido eu quem o escreveu. No princípio eu
não me achava capaz de tanto, e hoje eu o considero
correto demais, acadêmico. Não se parece comigo. Não
o renego mas não penso em reeditá-lo. Fica como documento.
O segundo, "Costela de Eva", foi um marco para mim,
pois a partir desse trabalho eu encontrei a minha linguagem:
coloquial, irônica, engraçada e melancólica ao mesmo
tempo. Escrevê-lo me gratificou. Publicá-lo me referendou.
E a trama narrativa é um achado.
Depois exerci minha fase
erótica aproveitando muito bem a coragem que Deus me
deu mais do que aos outros. Em plena repressão política
e moral do começo dos anos oitenta, desvendei o sentir
feminino. Contei para todo mundo que não éramos seres
mutilados por meio dos livros de prosa poética: "Livre
& Objeto" e "Retalhos Místicos" e do livro de contos
"O Discurso da Mulher Absurda". Corri riscos e pratiquei
obras-primas pelo simples prazer de praticá-las, como
o texto que vai abaixo:
Em
TEU CORPO -tendo como matéria prima um anticorpo, elemento
embutido, negado, estático, ferido e envergonhado ante
as mais legítimas sensações- tento construir um outro
corpo meu a partir do teu. Teu corpo que devasta o meu,
templo de solidão há tanto tempo. Teu corpo invasor
que me contenta e abastece. De mim e de meus direitos
ao prazer, nada tenho a reivindicar se é contigo que
desempenho o rito.
Tua
pele me modifica a temperatura até o dia seguinte se
eu tiver o cuidado de não tomar banho. Assim guardo
teus cheiros, prolongando esse amor epidérmico.
Viva
teu corpo de quadris estreitos feitos na forma masculina.
E tua cintura ágil se movimentando via o teu gozo que
provoca o meu, me banhando embaixo de ti sob a configuração
de uma caverna estreita que, de propósito, estreitarei
ainda mais para te surpreender e te fazer sorrir. Procurando
e aprendendo a me achar, tateaste o corpo de muitas
outras mulheres com teus dedos pianistas. Deposito,
por isso, um beijo na tua barriga confortável, num gesto
de quem faz um brinde à vida.
Que
isso nunca acabe. Mas, quando acabar, vou fazer de travesseiro
tua axila, gemendo suaves gemidos diferentes daqueles
escandalosos, desesperados que, ainda há pouco, te obrigaram
a me tapar a boca. Até que seu tórax bata num compasso
mais ligeiro, mais ligeiro, mais ligeiro, não vou parar
de me oferecer barulhenta. Porém, quando sentir que
estás crescendo, ficando maior do que já estavas, me
calarei. É hora de ficar quietinha pra te receber com
solidariedade. Silêncio. É meu homem que está se decompondo
num orgasmo absoluto.
Daí chegaram
os anos noventa quando fui morar nos Estados Unidos.
Pensando em dar continuidade a essa fase erótica fui
escrever um conto, que virou um romance de longo curso,
que virou uma tetralogia "O coração dos outros não é
terra que se pise". É esse o projeto sobre o qual me
debruço atualmente:
INIMIGAS ÍNTIMAS
é o primeiro volume de uma série de quatro romances.
É a gênese de uma saga familiar chamada O Coração
Dos Outros Não É Terra Que Se Pise. Foi publicado
e premiado.
O CÃO CHUPANDO MANGA
é o segundo volume. Tem como cenário a cidade de São
Paulo. Começa em 1971 e termina em 1985. O personagem
principal é Zezito, filho mais velho de Duda e Rita,
personagens principais em Inimigas Íntimas. Já
foi publicado.
OS BRAZUCAS, o terceiro
volume, se passará em cidades do exterior, precisamente:
Nova York, USA; Turim, Itália; Lisboa, Portugal. Os
personagens serão alguns dos filhos de Duda pinçados
do livro gênese Inimigas Íntimas. Eles abandonarão
o país por motivos diversos e mostrarão, na prática,
o jeitinho safado dos brasileiros para sobreviver no
estrangeiro. É esse trabalho que escrevo no momento.
O LIVRO DO PERDÃO é o
quarto volume e se encarregará de concluir a saga. Desfechará
a vida de todos os personagens. É o livro onde todas
as histórias pessoais e mágoas serão passadas a limpo,
daí o título. Trará também reflexões sobre o conceito
de perdão. Ação entre 1995 a 2004. Terá lugar novamente
em Sobral e na fazenda Jibóia onde essa saga iniciou.
12.
Uma biografia rápida.
JC - Nasci em Fortaleza
e moro em São Paulo. Meu mundo é a literatura: sou jornalista,
romancista, contista, cronista e conferencista. Publiquei
sete livros de prosa de ficção individualmente, e participei
de oito coletâneas de contos com outros autores. Tenho
obras traduzidas para inglês, italiano, espanhol e sueco.
Contribuo sistematicamente com a imprensa publicando
contos, resenhas ou artigos, e já faz algum tempo venho
me dedicando a palestras sobre literatura feminina brasileira
nas universidades do Brasil e do exterior. Escrevi crônicas
para o "Jornal da Tarde" de São Paulo, e com a maior
alegria sou a atual presidente da REBRA-Rede de Escritoras
Brasileiras, e membro do conselho diretor da RELAT-Rede
de Escritoras Latino- americanas.
Prêmio APCA - Associação Paulista de Críticos de Arte
- de melhor ficção de 1993, pelo romance "Inimigas
Íntimas". Meu mais recente livro é "O Cão
Chupando Manga".
13.
Você trabalhou como publicitária, não é? Não é um mercado
masculino?
JC- Todo mercado é masculino, visto que
tudo foi inventado para os homens e para nós adaptado
de acordo com a conveniência machista. Mas e daí? Tenho
habilidades, sou criativa e sei me fazer necessária
quando preciso trabalhar como qualquer
14.
Literatura também tem "panelas"?
JC- Acho que sim. Se
não são panelas, são nichos, coisas de quem vive em
sociedade. As pessoas se unem de alguma forma para se
defender de inimigos mais fortes. Assim nascem as panelas,
os nichos e até o Estado nasceu assim. Onde estão as
panelas não sei dizer, mas observando bem se acha. No
entanto de uma coisa estou segura: nenhuma panela resiste
a um grande talento. É melhor apostar nisso do que ser
um ressentido, dando desculpas de que não acontece por
impedimento das "panelas".
Referências
http://rebra.org
E-mail: rebra@rebra.org
http://www.JoyceCavalccante.com
E-mail: joycava@rebra.org
http://www.relat.org.pe