Eu cantarei de amor tão docemente

Por Luís Vaz de Camões

Eu cantarei de amor tão docemente,
Por uns têrmos em si tão concertados,
Que dois mil acidentes namorados
Faça sentir ao peito que não sente.

Farei que amor a todos avivente,
Pintando mil segredos delicados,
Brandas iras, suspiros magoados,
Temerosa ousadia e pena ausente.

Também, Senhora, do desprêzo honesto
De vossa vista branda e rigorosa,
Contentar-me-ei dizendo a menor parte.

Porém, para cantar de vosso gesto
A composição alta e milagrosa,
Aqui falta saber, engenho e arte.


Biografia

Por Mirna Queiroz (Breve cronologia, No Oriente,
O naufrágio, Nasce a obra, Vida boêmia, A morte do Poeta)

Hernâni Cidade
(Primórdios, A volta, O valor da lírica)

Breve cronologia

Luís Vaz de Camões nasceu provavelmente em 1524 ou 1525, talvez em Lisboa. Em 1548 desterro no Ribatejo; alista-se no Ultramar. Em 1549 embarca para Ceuta; perde o olho direito numa escaramuça contra os Mouros. Em 1551 regressa a Lisboa. Em 1552 numa briga, fere um funcionário da Cavalariça Real e é preso. Em 1553 é libertado; embarca para o Oriente. Em 1554 parte de Goa em perseguição a navios mercantes mouros, sob o comando de Fernando de Meneses. Em 1556 é nomeado provedor-mor em Macau; naufraga nas Costas do Camboja. Em 1562 é preso por dívidas não pagas; é libertado pelo vice-rei Conde de Redondo e distingüido seu protegido. Em 1567 segue para Moçambique. Em 1570 regressa a Lisboa na nau Santa Clara. Em 1572 sai a primeira edição d’Os Lusíadas. Em 1579 ou 1580 morre de peste, em Lisboa.

 


Mudam-se os tempos,
mudam-se as vontades...

Primórdios

A primeira biografia de Luís Vaz de Camões foi escrita em 1613, no "Prefácio" da edição de Domingos Fernandes, por Pedro de Mariz (1550-1615), filho de Antônio de Mariz, livreiro em Coimbra no tempo em que Camões ali vivia, e ele mesmo presbítero secular, bacharel em Cânones e guarda-mor da Livraria da Universidade, e assim em condições morais e cronológicas para da vida do Poeta conhecer dados essenciais. Alguns deles nos oferece o seu esboço biográfico, não desmentido pelos que a investigação posteriormente tem descoberto nem pelos próprios elementos autobiográficos colhidos na obra lírica e épica do Poeta.

O que nem ele nem ninguém nos dão de decisivo é a indicação do local e da data do seu nascimento. Como sucedeu com Homero, várias localidades disputam a glória de ser seu berço, mas Lisboa e Coimbra com mais probabilidades. Deixemos a discussão aos mais interessados pelas glórias locais do que pelo legado do Poeta, e digamos que as duas cidades têm, para seu orgulho, pábulo que baste: Coimbra, por ter-lhe condicionado o seu honesto estudo de humorista; Lisboa, a sua longa experiência social. Aparentado com os Camões, da mais honrada (ou seja, enobrecida) gente da cidade do Mondego, é ele próprio que afirma ter-lhe aqui decorrido parte da mocidade:

Nesta florida terra,
Leda, fresca e serena,
Ledo e contente pera mim vivia.

Longo tempo passei,
Com a vida folguei ...

  A poesia lírica de Camões é, em grande parte, poesia de circunstância, o que significa que emerge da vida, como a espuma do movimento da vaga, e isso lhe dá o valor autobiográfico precioso para quem não encontrou nenhum contemporâneo que dele com demorada atenção se ocupasse. Fidalgo e freqüentador do Paço Real, escreveu o soneto em que comenta o incidente palaciano de d. Guiomar de Blasfé, a filha do conde de Redondo, d. Francisco de Sousa Coutinho, que depois encontraria vice-rei na Índia. Uma vela do salão queimou-lhe o rosto; o caso foi comentado risonhamente e o Poeta dedicou-lhe as trovas Amor, que a todos ofende,


Teve, Senhora, por gosto
Que sentisse o vosso rosto
O que nas almas acende, e ainda um soneto
(O fogo que na branda cera ardia).

As trovas que glosam o mote de d. Francisca de Aragão e a carta que as acompanha têm significado ainda de maior intimidade, a carta quase expressiva de amitié amoureuse entre o Poeta e grande dama. Depois, era o teor literário das composições de graciosa finura que implicava, da parte das damas a quem eram dirigidas, educação que lhas esclarecesse e fizesse saborear. Acrescia a isto seu convívio com a Índia: são aristocráticos os nomes dos seus convidados para o banquete de trovas. Um deles — João Lopes Leitão — figura na Lírica escrita em Lisboa e interessaria ao Poeta, porque também não era alheio às Musas, e foi o único que em verso protestou contra a troca de iguarias por trovas naquele poético ágape...

No Oriente

Camões é desterrado para a Índia

Em 1552, Corpus Christi, no Largo do Rossio, dois mascarados lutam com Gaspar Borges, funcionário da Cavalariça Real. Camões aproxima-se, reconhece os mascarados, são amigos seus. Não hesita, mete a mão no bolso e parte para a rixa. Faca em punho, movimento nervoso, cutilada no pescoço do adversário. A noite acaba em sangue. Camões é preso e levado para a cadeia do Tronco. A mãe, dona Ana de Macedo, chora a prisão do filho. Vive em súplica de perdão para Luís: visita ministros reais e o próprio Borges. Passados nove meses a vítima, já restabelecida do ferimento, resolve atender ao pedido. É dia de alguma liberdade para Camões. O poeta deixa as masmorras sob duas condições: primeiro tem de pagar multa de 4 mil réis ao esmoler d’El-Rei; depois, embarcar para a Índia e servir por três anos na milícia do Oriente.

Pelo Oriente a vida de Camões é uma montanha-russa, com suas transitórias subidas, mas com suas bem mais demoradas depressões e descidas. Da viagem marítima, fixou-lhe a memória, comovida do espanto e sonho de outras bem opostas realidades, a tempestade do cabo da Boa Esperança, descrita na elegia O Poeta Simónides, ensaio -dir-se-ia- para a que havia de descrever na travessia do Índico, em Os Lusíadas. Mas quem, na largada para a vida aventurosa de guerreiro, nela se iniciando com o ataque ao rei da Pimenta, ao fato alude sem a mínima emoção de entusiasmo; quem, na mesma elegia, apenas mostra aspirar à vida dos lavradores bem aventurados, não apenas como desprendida de cuidados, como a sonhavam os poetas contemporâneos, mas como condição de enriquecimento do espírito, pois podia, lendo, conhecer as causas naturais de toda a cousa...não parece muito tentado pela glória militar, posto que, não sem orgulho, se represente como tendo numa mão a espada e noutra a pena...

Em março de 1553 o poeta parte para Goa na São Bento, nau incorporada à frota comandada pelo capitão Fernão Álvares Cabral. É soldado raso. Chega à capital da Índia portuguesa seis meses depois. Pena e papel sempre à mão, o poeta escreve sobre o que vê:

"(...) Cá, onde o mal se afina e o bem se dana,
E pode mais que a honra a tirania;
Cá, onde a errada e cega monarquia
Cuida que um nome vão a Deus engana;
(...) Cá neste escuro caos de confusão,
Cumprindo o curso estou da natureza.
Vê se me esquecerei de ti, Sião!"

Camões participa numa expedição punitiva contra o Rei de Chemba, na Costa do Malabar, enviada pelo vice-rei d. Afonso de Noronha. Vitória. O poeta regressa a Goa. Em fevereiro de 1554 parte novamente sob o comando de d. Fernando de Meneses. Dessa vez em perseguição a navios mouros que comercializavam entre a índia e o Egito, prejudicando o monopólio mercantil dos portugueses. A frota só volta à Índia em novembro do mesmo ano.

Chegam as férias militares, fim do soldo. Para ganhar alguns trocados, Camões escreve versos e autos por encomenda de um poderoso senhor que os apresenta como seus à pretendida. Em troca, restos de comida. O poeta também se torna escriba público. São muitos os soldados analfabetos. Camões escreve cartas para os seus familiares no Reino. Assim vive em Goa até 1556.

O naufrágio

Fim do estágio obrigatório na milícia do Oriente. Camões é nomeado provedor-mor em Macau, entreposto comercial de portugueses na China. É encarregado de arrolar e administrar provisoriamente os bens de pessoas falecidas ou desaparecidas. Lá, descobre uma estreita gruta, refúgio. Passa horas a escrever "Os Lusíadas": a viagem épica de Vasco da Gama e, no extremo sul da África, o gigante Adamastor a tentar impedir o avanço dos nautas portugueses:

"Eu sou aquele oculto e grande Cabo
A quem vós chamais de Tormentório."

Heróis trágico-marítimos; deuses mitológicos, paixões, intrigas, batalhas, aventuras e cobiças. Histórias de um minúsculo Portugal em expansão, "mais do que prometia a força humana"...

Não tarda e é acusado, por compatriotas, de apropriação de dinheiro alheio. Camões tem de ir a Goa para responder a inquérito judicial.

No regresso, o susto, o naufrágio. Está na Costa de Camboja, próximo do Rio Mecom. Camões salta do barco. "Os Lusíadas" colados ao corpo. Braçadas. Mais braçadas. Turbilhão de água, escassez de ar. Camões nada, incansavelmente. Terra firme. Ainda não perdeu os sentidos. Sabe que está vivo. Olhar de soslaio, o manuscrito está salvo. Já pode desmaiar. O corpo a transpirar, ardência, febre. A infância, paixões e conflitos, lampejos. Mazelas.

Camões acorda na praia. Tudo embaçado, imagens sem sentido. Sonho e realidade confundem-se. Abandona-se. Chora a perda da mulher amada: Dinamene, a chinesa, "aquela cativa que me tem cativo"... Ela, que viajou em sua companhia, não sobreviveu ao naufrágio. Luís Vaz levanta-se, caminhar trôpego, desconsolo:

"Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida, descontente,
Repousa lá no céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste."

A volta

Ao fim de 16 anos, aproximadamente, de uma vida que ele pôde chamar sem grande exagero a mais desgraçada que jamais se viu, regressa a Portugal. Regressa sem recursos, nem para o pagamento da viagem, nem para, na ilha de Moçambique, poder esperar pela nau em que embarcasse. Diz Diogo de Couto que ali o viu vivendo de amigos, compondo o seu Parnaso, livro que qualifica de muita erudição, doutrina e filosofia, e lhe roubaram, e dando a última demão às suas Lusíadas.

Parte para Portugal em 1569. Como única riqueza, trazia "Os Lusíadas", que ele mesmo refere (canto X, 128) ter salvado do naufrágio em que perdeu uma moça oriental, a que vinha muito ligado e a que dedica o soneto" Alma minha gentil, que te partiste", a crer no texto do manuscrito da Biblioteca Municipal do Porto, que se julga ser a "VIII Década Perdida" por Diogo de Couto. Também parecem inspirados pela mesma saudade os sonetos "Ah! minha Dinamene! assim deixaste", "O céu, a terra, o vento sossegado"..., e "Quando de minhas mágoas a comprida".

A vida em Portugal não lhe correu mais propícia. Um admirador do seu gênio, todavia -d. Manuel de Portugal-, é exaltado pelo Poeta como o Mecenas a quem Os Lusíadas devem a sua publicação. Ele lhe facilitaria, por ventura, a tença de 15.000 réis anuais com que, a título precário e depois de somar os serviços por ele prestados no Oriente e os que viria a prestar no futuro à suficiência do poema, d. Sebastião entendeu dever pagar o tesouro do Luso, que assim qualificou Cervantes "Os Lusíadas".

Talvez que a soma fosse suficiente, se a nossa burocracia, por imprevisto milagre das Musas, fosse, para o Poeta, de prontidão e diligência que nunca esteve nos seus hábitos, e se Camões, por ainda mais imprevista surpresa da sua natureza de poeta, em vez de continuar tecendo belos sonhos líricos, passasse a ocupar-se de contas de economia doméstica. O que de certo se sabe é o que nos dizem os dois únicos contemporâneos que atentam em sua existência nos últimos anos - Diogo de Couto e Diogo Bernardes. O primeiro informa-nos da situação em que o encontrou na ilha de Moçambique -comendo de amigos, que ainda lhe custearam o regresso a Lisboa. Da sua vida em Lisboa, testemunha ainda, na "Década VIII" publicada: "Em Portugal morreu este excelente Poeta, em pura pobreza". Por seu turno, Diogo Bernardes, no soneto que lhe consagra e "Soropita" publica na 1ª edição de Rimas, em 1595, escreve:

"Honrou a Pátria em tudo. Imiga sorte
A fez com ele só ser encolhida,
Em prêmio de estender dela a memória."

Como se vê, não foi necessário grande dispêndio de fantasia para criar a lenda dum Camões na miséria, apenas aliviada pelas esmolas que seu pobre escravo Jau lhe angariava. A miséria mendiga apenas exagera, não cria, a pura pobreza de que nos informa Couto...

Nasce a obra

Em Goa, sempre as atribulações: um empréstimo aqui, outro acolá. Finta. Um credor zanga-se. Cadeia. Do cárcere, Camões invoca os bons ofícios do Conde de Redondo, vice-rei da Índia Portuguesa, nuns versos humorísticos escritos por volta de 1562. O vice-rei concede-lhe a liberdade. O poeta é ainda distinguido com a sua proteção.

Nessa época mantém contatos com outras figuras importantes. Representa o auto do Filodemo ao governador Francisco Barreto. Compõe uma ode a favor do vice-rei d. Constantino de Bragança, defende-o contra críticas. Também é amigo do vice-rei Francisco de Sousa Coutinho. Ganha de um deles a nomeação para a feitoria do Chaul, mas não chega a ocupar o cargo. Convive com Diogo do Couto, o continuador das "Décadas", e com Garcia de Orta. O médico, naturalista e ex-catedrático de Lisboa pede-lhe uma ode para acompanhar a primeira edição dos "Diálogos dos Simples e Drogas".

Apesar das boas relações, Camões queixa-se da vida difícil. Resolve então celebrar as próprias desgraças, é o que diz aos companheiros. Banquete. Mas na mesa, não há iguarias nem bom vinho.

"Heliogábalo zombava das pessoas convidadas,
E de sorte as enganava,
Que as iguarias que dava
Vinham nos pratos pintadas.
Não temais tal travessura,
Pois já não pode ser nova;
Que a ceia está segura
De não vos vir em pintura,
Mas há de vir toda em trova."

Em 1567, Camões conhece Pêro Barreto. Nomeado capitão para Moçambique, Barreto promete-lhe um emprego e adianta-lhe o pagamento da passagem. Dívida prolongada. Os dois brigam. O Capitão manda prendê-lo, rotina.

Fome. Os amigos mais uma vez ajudam-no. Inverno. Camões fecha-se na poesia. Retoca os seus Lusíadas. Deseja muito imprimi-los. Nesses dias de frio, o poeta nunca larga a sua pena: compõe o "Parnaso Lusitano", coletânea de poemas líricos. Obra de muita erudição, consideram os amigos. Um ladino leva-a, fim desconhecido.

Finais de 1569. Nos últimos meses, o poeta fala muito na Pátria, que tanto exalta em seus cantos. Saudades. Diogo do Couto junta uns amigos, compram roupas a Camões, pagam-lhes as dívidas e ajudam-no a deixar Moçambique.

Camões chega a Lisboa na Santa Clara, em 1570. Traz com ele Jau, um escravo javanês comprado em Moçambique, e os dez cantos d’Os Lusíadas. Na capital portuguesa vai viver com a mãe, na Mouraria. A sua penúria é ainda maior. O poeta abatido pousa a cabeça na escrivaninha e queixa-se em voz baixa: "Ah! Fortuna cruel! Ah! Duros Fados!".

Apenas uma ambição: editar Os Lusíadas. Macambúzio, roupa apertada e esgarçada, restos de altivez, o poeta pede ajuda ao conde de Vimioso, d. Manuel de Portugal. Permissão real para levar adiante o seu projeto. Júbilo. O censor, frei Bartolomeu Ferreira, concede-lhe o imprimatur. Mas antes, lê o poema e faz algumas modificações: limpeza de certos indícios de impiedade.

Na oficina do mestre António Gonçalves, à Costa do Castelo, a obra de Camões ganha corpo. Desatenção: duzentos exemplares cheios de erros tipográficos. Correm os primeiros meses de 1572.

Após a publicação, D. Sebastião, o jovem monarca, concede ao poeta uma tença trienal de 15 mil réis, ou seja 40 réis por dia, "em respeito aos serviços prestados na Índia e pela suficiência que mostrou no livro sobre as coisas de tal lugar". Vale lembrar que, nesta época, um carpinteiro ganha em média 160 réis por dia. A pensão é renovada em 1575 e novamente em 1578. Conta-se que o poeta sobrevive juntando estes proventos às esmolas recolhidas pelo escravo javanês.

O seu nome começa a fazer eco. Composições líricas e até cartas suas uma escrita em Ceuta, outra na Índia e mais duas escritas em Lisboa, passam a ser recolhidas em cancioneiros particulares manuscritos.

Vida boêmia

Conta-se que o poeta é levado a frequentar o Paço por d. António de Noronha, cuja morte é citada num soneto. Ali conhece dona Caterina de Ataíde, dama da Rainha, por quem se apaixona perdidamente. O objeto de paixão é imortalizado na sua lírica sob o anagrama de Natércia. Há quem diga ainda que o autor d’Os Lusíadas se enamora da própria Infanta d. Maria, irmã de d. João III, rei de Portugal.

Talvez boatos, como tantos outros acerca de sua vida. O que se sabe ao certo é que os seus amigos são vadios que se amotinam pelas ruas da cidade; as suas mulheres, meretrizes. O Malcozinhado, bordel de má fama lisboeta, é o lugar preferido para refastelar-se. Gosta de fitar o sexo oposto. Assedia, fala, canta. É jocoso. Convida a dançar, cheiro a cravo. Saiotes a girar, contentamento. Inspiração:

"Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente
É dor que desatina sem doer..."

Mas a vida do poeta não é feita só de encontros fortuitos. Alterna pequenos momentos de regozijo com indagações profundas sobre si mesmo. Nos seus pensamentos, os apetites carnais entram em colisão com a visão platônica que tem da mulher e dos sentimentos amorosos. Transfere a contradição para a lírica. Compõe o amor no seu mais alto anseio espiritual, afetivo. O amor transcendente, imaculado:

"Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar,
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.
Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois consigo tal alma está liada."

Mas também evoca o erotismo, os desejos e a arte de tão bem seduzir. Dirá mais tarde, n’Os Lusíadas:

"Oh! Que famintos beijos na floresta,
E que mimoso choro que soava!
Que afagos tam suaves, que ira honesta,
Que em risinhos alegres se tornava!
O que mais passam na manhã e na sesta,
Que Vénus com prazeres inflamava,
Melhor é exprimentá-lo que julgá-lo;
Mas julgue-o quem não pode exprimentá-lo."

Num plano mais terreno, Camões tem outras inquietações. É apontado como sujeito folgado e briguento. Ganha a alcunha de Trinca-Fortes. As suas desavenças dão origem ao desterro, em 1548. Segue para o Ribatejo. No bolso, nem um vintém. Amigos afortunados garantem-lhe cama e comida.

Vive seis meses na província, de favores. Resolve alistar-se na milícia do Ultramar. Embarca para Ceuta no outono de 1549. Perde o olho direito numa escaramuça contra os mouros inimigos de Cristo. Em 1551, volta a Lisboa. Amargura, desilusão:

"(...) Que castigo tamanho e que justiça.
(...)Que mortes que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimenta."

O poeta anda muito calado. Reflexões. Confessa aos amigos que sente despedaçados todos os valores em que acredita, ele, homem de princípios cristãos. Aflito com as diferenças entre utopia e realidade, aspiração e recompensa. Já escrevera sobre a contradição entre o que julga ser moral, racional e o que realmente testemunha e vive. É o "desconcerto do Mundo, em que os bons vê sempre passar no mundo graves tormentos, os maus vê sempre nadar em mar de contentamentos". Tais injustiças passam a ser tema constante na sua lírica. Descreve os seus infortúnios, aponta com desprezo a sede cobiçosa, o querer tiranizar. Também não lhe escapam as transformações às quais os homens estão sujeitos:

"Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades
Muda-se o Ser, muda-se a confiança;
Todo mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades."

O valor da lírica

A Lírica de Camões, publicada em 1ª edição com o título de Rimas (ou, na ortografia antiga — Rhythmas), é a realização, em plenitude e na sua máxima altura, de tudo quanto de mais delicado, profundo e belo se sonhara ensaiar na poesia anterior. A lírica dos cancioneiros medievais, enriquecida em temas e propósitos, aperfeiçoada em expressividade e métrica no Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende, ficava ainda a grande distância da profundidade e variedade de pensamento, das graças formais e poder de sugestividade, no movimento como na música verbal, na misteriosa magia da poesia camoniana. O contato do Poeta com seus pares latinos -Virgílio, Horácio e Ovídio-, com os italianos -Petrarca, Sannazzaro, Bembo e Bernardo Tasso-, com os poetas castelhanos -Manrique, Bosean e Garcilaso- não lhe sufocou, antes lhe excitou o gênio próprio, porque tudo assimilou como substância do seu próprio pensar e sentir, de tudo fez expressão das próprias vivências; toda esta variedade, como o faz um rio aos seus afluentes, ele a submeteu ao seu fluir vital, em lampejos dir-se-ia que produzidos pelo mesmo Sol, que num mesmo universo, a todos cobria de sua luz e animava de seu calor.

Repare o leitor no tema da fonte, dos cancioneiros medievos, e compare qualquer das canções medievais com as suas cantigas: Lianor vai pera a fonte e Na fonte está Lianor. Na primeira, o Poeta, enamorado da forma e da cor, dá-nos da namorada a figura plástica e colorida. Presença corpórea e pormenores do vestuário. E a por como expoente a graça que tudo penetra e ultrapassa, os versos: "Chove nela graça tanta, Que dá graça à fermosura. Chove: a graça vem do Céu...". Na segunda, é o estudo dos movimentos do espírito, seu estado, suas reações emotivas. A interrogação é persistente e ansiosa: Vistes lá o meu amor? Mas eis que lhe dão novas do Amado e logo a emoção de alegria, qeu lhe não cabe na alma, rebenta e desborda, convertida em pranto — que é a expressão natural da alegria extrema. Imprevistos pormenores na descrição do exterior; inéditas minúcias surpreendidas na vida interior.

Com Petrarca, os petrarquistas de Quatrocentos e Quinhentos aprenderam a intelectualizar as emoções amorosas, a surpreender na dialética dos contrastes os paradoxos da vida íntima, nos conflitos entre os anelos da alma e os impulsos do instinto, entre a razão e o sentimento, entre os próprios desníveis do mesmo sentimento. Camões, como todos os poetas seus contemporâneos, molda pela de Petrarca a expressão de tais conflitos, mas em quase nenhum dos sonetos em que o imita deixa de imprimir a dedada do seu gênio ou das suas vivências pessoais. Um dos sonetos sob tal aspecto mais significativos é Alma minha gentil, que te partiste, quando confrontado com o imitado soneto de Petrarca, que transcrevemos e traduzimos:

Anima bella, da quel nodo sciolta
Che piú bel mai non seppe ordir Natura,
Pon dal ciel mente alla mia vita oscura,
Da si lieti pensieri a pianger volta.

La falsa opinion dal cor s'é tolta
Che mi fece alcun tempo acerba e dura
Tua dolce vista: ormai tutta sicura,
Volgi a me gli occhi, e i miei sospiri ascolta.

Mira 'l gran sasso donde Sorga nasce,
E vedravi um che sol tra l'erbe e l'acque
Di tua memoria e di dolor si pasce.

Ove giace 'l tuo albergo e dove nacque
Il nostro amor, vo' ch'abbandoni e lasce
Per non veder ne' tuoi quel ch'a te spiacque.

In M. Soneto, 37

Tradução

Alma bela, solta daquele nó
Que nunca mais belo a Natureza soube urdir,
Lança do Céu uma lembrança à minha vida obscura,
De tão alegres pensamentos volta às lamentações.

Foi extirpada do coração a falsa opinião,
Que me tornou, por algum tempo, acerbo e duro
Teu doce olhar; hoje, plenamente segura,
Volve para mim os olhos e escutas os meus suspiros.

Atenta na grande fraga de onde nasce o Sorga,
E aí verás alguém que só por entre ervas e águas
De tua memória e de dor se nutre.

O lugar onde está a tua casa e onde nasceu
O nosso amor, quero que abandones e esqueças
Para não veres nos teus o que te desagrade.

É, de toda a evidência, o soneto camoniano de mais delicados sentimentos que o do florentino. "Em Camões, uma religiosa e casta timidez na evocação da melindrosa amada celestial, uma condicional, não expressa no soneto de Petrarca, atenuando a possível irreverência de pedido:

Se lá no assento etéreo onde subiste,
Memória desta vida se consente...

Depois a humildade de quem pede -não te esqueças- em vez da exigência senhoril -quero que abandones e esqueças. Mais abnegada e misticamente amorosa também a atitude do português: não o preocupa apenas viver cá na terra sempre triste (pensamento dominante no florentino); deseja que a amada repouse lá no Céu eternamente. E o fecho do soneto, onde a técnica exige que refulja o conceito principal, ao contrário de Petrarca, que o carrega no lastro das coisas da vida, dá-lhe o nosso lírico asas que estremecem em desejos de místicas núpcias no Céu.

O Poeta, pensando nos desconcertos do Mundo, parece chegar a conclusões que negam a Providência, que crê incompatível com tais desconcertos, em que a injustiça predomina. As oitavas que ao problema dedica são a meditação mais audaciosa a que, em matéria religiosa, foi dada expressão poética. Mas o seu Autor, que na elegia Se quando contemplamos as secretas..., sente a existência de Deus na ordem do Universo, sente-a na verdade que nas cousas anda, que mora no visível e invisível, e, para juntar à crença em Deus a crença em Cristo, não se contenta de opor, às dúvidas de todos os treze versos anteriores do soneto "Verdade", amor, razão, merecimento, a absoluta afirmação do último: "Mas o melhor de tudo é crer em Cristo". A frase é, na verdade, mais imperativa do que persuasiva. Em toda esta elegia se esforça o Poeta por dar evidência a todos os pormenores da cega injustiça, da gélida ingratidão, da crueldade desumana a que Cristo é sacrificado, e insere versos deste teor:

Senhor! Que amor foi este tão crescido,
Que tão dobradas forças faz singelas
Lá de tão alto, baixo e abatido?

Ó preciosas chagas, roxas, belas,
Luminárias da noite tenebrosa,
De toda luz privada das estrelas!

As chagas de Cristo, os sofrimentos incomparáveis representados, o maior sacrifício feito pela Humanidade, são, na noite tenebrosa do Universo e da Vida, luminárias incomparáveis!

Eis os dois pontos em que Luís de Camões — o único poeta do seu tempo que em Portugal, ao contrário de Miranda, que escreve:

Sofistas me são defesos
Com seus enganos e cismas;
De fé, que não de sofismas,
Quer Deus os peitos acesos;

e ao contrário de Gil Vicente, que se nega a penetrar funduras do pensamento religioso — ousa duvidar, ousa discutir, até que lhe segurem a fé herdada de seus antepassados, estes dois pontos de apoio: ordem do Mundo, que lhe assegura a existência do Ser que a estabelece; as chagas de Cristo, tão grande sacrifício para a salvação moral do Homem, que só lho pode explicar uma dádiva do amor de Deus.

A morte do Poeta

Em 1579 a peste assola Lisboa. Num quarto escuro, Camões estirado na cama. Tem muita febre e já ninguém duvida que é mais uma vítima da doença. Na boca, um gosto, misto de gengibre, canela, cominhos e açafrão: remédio contra a pestilência. Dona Ana de Macedo segue todas as receitas conhecidas: sangria e até sumo de serpilho misturado com leite de mulher. Na casa, o fogo sempre aceso para queimar o ar que tresanda.  

O autor d’Os Lusíadas está muito fraco, mas insiste em escrever. Remete uma carta a d. Francisco de Almeida, referindo-se ao desastre de Alcácer-Quibir, à ruína financeira da Coroa portuguesa, à independência nacional ameaçada. "Enfim acabarei a vida e verão todos que fui tão afeiçoado à minha Pátria que não só me contentei de morrer nela, mas com ela".

A mãe deixa o quarto, prato de comida intacto nas mãos. O poeta já não reage. Desvanece.

"Foge-me, pouco a pouco, a curta vida,
Se por acaso é verdade que inda vivo;
(...) Choro pelo passado; e, enquanto falo,
Se me passam os dias passo a passo.
Vai-se-me, enfim, a idade e fica a pena."

O seu corpo é sepultado num canto qualquer da banda de fora do cemitério do Convento de Santana. E ainda assim graças à Companhia dos Cortesãos, que paga as despesas do funeral. Segundo os amigos mais próximos, os últimos anos de Camões são vividos na mais absoluta miséria. À mãe deixa apenas a tença que lhe foi atribuída e a ela transferida.

Depois da sua morte cresce o interesse pelos seus poemas -apenas três deles publicados em vida- e pelos seus autos e comédias: Auto dos Anfitriões, Auto d’El Rei-Seleuco e o Auto de Filodemo.

Em 1548 sai a segunda edição d’Os Lusíadas, chamada "Dos Piscos". Expurgada pela censura, que a mutila, principalmente por motivos religiosos, até à quarta edição em 1609. Em 1670, contam-se 18 edições dos cantos. O tempo passa, estudiosos de vários pontos do mundo debruçam-se sobre a sua vida e obra. É elevado a herói nacional. O poeta ainda vivo, apesar do seu fado. Vivo pelo seu amor à Pátria, pela epopéia, pel’Os Lusíadas. Vivo pela sua angústia existencial, pela sua lírica: a mulher como anjo, porém a carne; a razão, porém o desejo; as idéias, porém o dia-a-dia; o espírito, porém o corpo. Luís Vaz dilacerado, violência, violência:

"Erros meus, má fortuna, amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a fortuna sobejaram,
Que para mim bastava amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que as magoadas iras me ensinaram
A não querer já nunca ser contente.

Errei todo o discurso dos meus anos;
Dei causa a que a fortuna castigasse
As minhas mais fundadas esperanças.

De amor não vi se não breves enganos.
Oh! quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Génio de vinganças!


Música de fundo em arquivo MID (experimental): "Espírito de verão", de Eumir Deodato

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Belo Horizonte, 14 de outubro de 2003

Poesia