Depoimento
O poeta e a canção
Por Luiz Nassif
E-mail: lnassif@uol.com.br
Publicado na Folha de S.Paulo
30 setembro, 2000
Quando Vinícius de Moraes morreu, lá
se vão dez anos, foi como se minha geração inteira tivesse
perdido um parente íntimo, daqueles que nos instruíram nos primeiros
namoros, que nos acompanharam em todas as emoções. Toda lembrança
romântica ou nostálgica tinha como referência uma música
de Vinícius.
A primeira serenata, a primeira paixão platônica, a primeira
namorada, o primeiro boteco de boemia, tudo passava pelo poeta Vinícius.
Lá em Poços de Caldas (MG), Vinicius de Moraes só não
era unanimidade quando se tratava de qualificar quem era o maior poeta brasileiro.
A maior parte da turma ficava com Carlos Drummond de Andrade, alguns com Manuel
Bandeira, dois cruzadistas ficavam com os concretos.
Os novos não chegavam até nós. Mário Faustino
era uma lenda que ninguém lera, porque a distribuição
do carioca "Jornal do Brasil" não chegava tão longe.
Carlos Penna, o homem azul de Recife, também era uma referência
distante. Confesso que, se tivesse lido o poema que Bruno Tolentino fez para
a morte de Anecy Rocha, o teria incluído imediatamente nas nossas discussões
sobre o maior. Mas o que batia no peito, repicava no fígado e cobria
de emoções a razão era Vinícius de Moraes.
Não era apenas o poeta maior, era o guia. Todos queriam ser como Vinícius,
amar e ser amado como Vinícius, beber como Vinícius.
Privilégio
Quando o Newton, que estudava em Ouro Preto,
contou que passou uma noite bebendo com Vinícius e com um estudante
chamado João Bosco, a gente pedia para ele repetir toda hora cada gesto
que se lembrava do mestre. Os puristas torciam o nariz. Até hoje não
aceitam que a letra de música tenha valor literário. E Vinícius
sempre foi contra limitações e formalidades.
Na Música Popular Brasileira, não teve ninguém que o
superasse, apesar dos grandes Luiz Peixoto e Orestes Barbosa, e dos clássicos
contemporâneos, como Aldir Blanc, Chico Buarque, Caetano, Paulo César
Pinheiro e Hermilo Bello de Carvalho.
A bossa nova teve Tom Jobim e João Gilberto. Mas a marca maior do movimento
foi Vinícius. Ele deu a temática, o modo de vida carioca, a
paixão desenfreada e moderna. Com ele, Tom Jobim atingiu seus maiores
momentos. Depois, cada novo compositor que se aproximava de Vinícius
conseguia alcançar, com ele, o seu auge.
Tome-se toda a produção de Carlos Lyra. A parte mais expressiva,
de longe, são as parcerias com Vinícius.
Baden Powell foi o maior violonista popular do século. Mas, nas composições,
jamais conseguiu igualar o período em que seu letrista foi Vinícius.
Foi o letrista clássico da dor-de-cotovelo, o autor das mais expressivas
cantigas infantis modernas ("Era uma casa, muito engraçada / não
tinha teto, não tinha nada"), o homem das críticas sociais.
Qualidades
O curioso na história é que Vinícius não era apenas
o grande letrista e ideólogo de uma nova estética. Era também
um compositor dos mais expressivos que apareceram.
Compôs poucas melodias, mas todas elas obras-primas de simplicidade
musical, de equilíbrio estético.
Como "Valsinha", curiosamente uma obra prima de melodia, dele, em
uma obra-prima de letra, de Chico Buarque-, "Serenata do Adeus"
("ai, a lua que no céu surgiu / não foi a mesma que partiu"),
um clássico da dor-de-cotovelo, com letra e música dele.
Assim como "Cem por cento", nosso hino nacional atual ("Há
tanta gente que diz, coisas dela / mas essa gente que diz cai por ela"),
ou esse primor de equilíbrio melódico criativo que é
"Pela luz dos olhos teus".
Popularização
Confesso que os de minha geração torcemos o nariz quando ele
se aproximou de Toquinho. Nada contra Toquinho, que já surgia como
um belíssimo violonista e um parceiro de Chico Buarque em algumas músicas
consagradas em nossas serenatas. Mas é que parecia que o velho mestre
estava começando a se cansar.
Passou a produzir em larga escala e, pior do que isso, a fazer um sucesso
danado.
No fundo admito aqui, de público: o que nos incomodava é que
Vinícius deixava de ser "nosso".
Ele passava a ser amado também pelos freqüentadores de cervejarias,
por aquele povo barulhento e alegre que gostava também de Luiz Ayrão
e Paulo Diniz. E o pior é que as músicas eram um embalo só.
Mas até os mais críticos da dupla esquecem esse preconceito
besta e colocam-se de joelhos quando alguma rádio desavisada toca "Rosa
Desfolhada" ("Tento compor, com nosso amor, dentro da tua ausência"),
dele e de Toquinho.
Foi o dia em que Toquinho virou Tom Jobim, e Vinícius mostrou que um
poeta nunca envelhece.
Música
de fundo em arquivo MID (experimental):
"Meditacao",
de Tom Jobim e Newton Mendonça
Nota para a seqüência Midi: *****
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