O futuro
Enviado por Isolda Harris, Dallas-Texas (USA)
13 fevereiro 2004
Por
Max Gehringer
Em
1999, no auge de uma carreira bem-sucedida que o levou à
direção de grandes empresas (Pepsi, Elma Chips
e Pullman), Max
Gehringer tomou uma
decisão raríssima no mundo corporativo: abriu
mão do poder e das mordomias de alto executivo para
dedicar seu tempo em escrever e fazer palestras pelo Brasil.
Dentre seus livros, destaca-se "Comédia Corporativa"
(Editora Campus). O humor e a sensibilidade dos textos de
Max vêm de sua vivência prática, num mundo
que ele conhece degrau por degrau: seu primeiro emprego, aos
12 anos, foi de auxiliar de faxina. O último, presidente
da Pullman. Além de escrever para as revistas do grupo
Abril, suas crônicas podem ser ouvidas, nas manhãs
dos dias úteis, pelas ondas da rádio CBN
Hoje é 20 de agosto de
2124, quarta-feira, que no Brasil agora se chama Wednesday,
já que o português foi oficialmente banido quando
nos tornamos o 67º Estado dos United States of Wide America,
em 2095. Teve quem não gostou, claro, principalmente
depois que a Floresta Amazônica virou a Tropical Disney
World, mas a maioria apoiou porque finalmente pôde tirar
passaporte americano sem aporrinhação e passou
a receber salário em dólar.
É verdade que muitos brasileiros
ainda conservam um ranço xenófobo, o que é
meu caso, por isso este relatório está sendo escrito
em nossa antiga língua-mãe, que eu só domino
porque nasci lá no distante 1980. Fiz 144 anos, trabalho
há 126, estou forte e saudável, mas já
ouço insinuações de que minha carreira
entrou no plano vegetativo.
A vida corporativa do século
22 não é justa com o pessoal da sexta idade, como
eu: basta a gente chegar aos 140, e começa a ser discriminado
no trabalho... Os velhos tempos me dão saudade (uma de
nossas poucas palavras que entraram no Mega Dicionário
Americano, como sinônimo para "senseless feeling"),
apesar de quase mais nada ser como era.
Por exemplo, eu nasci com unha,
cabelo e dente, últimos resquícios de nossa descendência
selvagem. E na juventude pratiquei zelosamente um ato denominado
"sexual" para reprodução da espécie,
coisa que, hoje, a ciência simplificou muito: basta ir
a qualquer McDonald's, comprar um kit de óvulo e espermatozóide
(o número 3 tem sido o preferido pelos consumidores,
porque acompanha uma Coca-Cola grátis) e inseri-lo num
tubo plugado a um sistema embrionário - cujo nome técnico
é "tamagoshi".
Aí, é só
redigitar a configuração desejada do genoma e
depois ir clicando os comandos para as cargas vitais de proteínas.
Simples. Em seis semanas, aparece a ficha fitoergométrica
da criança, os custos de alimentação e
educação e a mensagem "Are you sure you want
to give birth?"
Meu filho mais novo, o 365A27W648,
vulgo "8", agora deu de ser curioso e me perguntar
porque no meu tempo as coisas eram tão complicadas. Eu
tentei explicar para ele que o tal ato ia além da simples
reprodução, que a gente sentia prazer em copular,
e ele fez aquela cara de nojo, típica de adolescente
recém-saído da universidade.
Mas, tudo bem, ele tem só
4 anos, um dia talvez entenda melhor. Eu sei, estou divagando,
desculpem. Não é das reviravoltas da natureza
que este relatório trata, e sim das relações
no trabalho. Meu hiperboss vai fazer uma apresentação
no mês que vem, em Urano - com o criativo título
de "Como Enfrentar os Desafios do Século XXII"
-, e pediu minha colaboração. Ele quer mostrar
às novas gerações a evolução
da interação entre empresas e funcionários
ao longo dos últimos 150 anos, desde a chamada "Era
Jurássica Trabalhista" (1980-2020) até o
aparecimento do "Homo Pizza", no final do século
XXI. E me escolheu porque eu vivi todas as etapas do processo,
além de ser o único por aqui que ainda sabe usar
algarismos romanos. Então, vamos lá:
Transporte
Os empregados acordavam de manhã
e iam para seu local de trabalho dirigindo um veículo
pesadão e lerdo, que funcionava queimando derivados do
extinto petróleo, chamado "automóvel"
- não sei bem por que esse nome, que significa "move-se
por si mesmo", já que o tal veículo só
se movia sob comando humano e, algumas vezes, nem assim. Mas
a maior dificuldade era enfrentar o "trânsito",
do latim transire, "ir para a frente", e esse era
exatamente o problema, já que o trânsito quase
nunca ia em frente, e daí originou-se uma frase de uso
muito comum, "Atrasei por causa do trânsito",
que literalmente significa "Fiquei para trás porque
fui para a frente". Ou seja, aquele povo era duro de entender.
O mais incrível é que, apesar de tanta confusão
e contrariando a lógica, as pessoas ainda conseguiam
chegar ao que chamavam "local de trabalho".
Local
O sistema jurássico de
trabalho era coletivo, e as empresas até usavam jargões
como "teamwork" para incentivar essas aglomerações,
sem atentar para o fato de que elas eram uma fonte de proliferação
de micróbios. O ponto de encontro era o escritório,
um lugar onde os funcionários escreviam, daí a
origem da palavra. Eram áreas enormes, onde pessoas se
amontoavam em cubículos e passavam a maior parte do tempo
produzindo "documentos", cuja principal finalidade
era a de servir como evidência física de que as
pessoas estavam ocupadas. Após produzidos, os documentos
eram imediatamente "arquivados", de preferência
em lugares onde nunca mais pudessem ser localizados. Isso na
época tinha o mesmo nome de hoje, "burocracia".
A diferença é que os atrasados do século
XX faziam tudo com oito cópias, e nós, 150 anos
depois, conseguimos reduzir para sete.
Individualidade
O primeiro passo para erradicar o coletivismo inútil
foi o "SoHo" (Small office, Home office), uma sigla
surgida aí por 2000, que permitia aos funcionários
trabalhar, confortável e produtivamente, em suas próprias
casas.
No Brasil, uma das conseqüências
imediatas do SoHo foi o aparecimento de uma variante esperta,
o "SoNo". O que obviamente implicou num aumento brutal
da quantidade de documentos produzidos, porque só assim
os chefes acreditariam que seus funcionários estavam
acordados em suas casas.
Depois do SoHo veio o "SoCo",
aí por 2050. O "Co", todo mundo sabe, significa
Chip Office. Foi quando as corporações conseguiram
implantar um microchip em cada funcionário para controlá-lo
24 horas por dia, desde o batimento cardíaco até
o nível de atividade dos neurônios. Uma das características
do SoCo que mais agradou às chefias - além do
comando de "wake upcall" - foi a possibilidade de
emitir um choque elétrico remoto quando o funcionário
atrasasse a remessa de um documento.
Jornada
Trabalha-se oficialmente 2 horas
por semana, mas já há rumores de que a jornada
será reduzida para 100 minutos semanais. O que, tirando
o tempo necessário para o sono e as inconveniências
fisiológicas -que não sofreram alterações
nos últimos 100.000 anos-, dá umas 120 horas ociosas
por semana.
O professor Domenico De Masi,
que vive em estado de hibernação metafísica
na Itália, afirma que isso é um absurdo, e defende
a tese de que no futuro trabalharemos 100 minutos por ano. Mas
o problema, mesmo, é que nunca conseguimos nos acostumar
com o ócio. Por isso, nossa maior fonte de renda atual
é a hora extra - fazemos, em média, 14 delas por
dia, inclusive aos sábados.
Efeitos colaterais
Hoje, as megacorporações vêm se questionando
se essa troca do trabalho grupal pelo individual foi realmente
um progresso. Primeiro, porque ninguém mais conhece ninguém,
já que os "colegas" viraram imagens digitalizadas.
Segundo, porque todo mundo ficou sedentário e engordou
uma barbaridade. E terceiro porque os antigos executivos eram
estressados, e os novos sucumbem à depressão,
o que acarreta muitos suicídios (ou, em linguagem ciberneticamente
correta, self ctrl+alt+del).
O maior guru de administração
do século XXII - Tom Peters, vivendo confortavelmente
em estado gasoso, num tubo de ensaio - publicou recentemente
um artigo que está causando uma comoção
corporativa. Ele defende a tese de que "nada substitui
o contato humano". Incrível, dizem seus fiéis
admiradores, que ninguém tivesse pensado nisso ainda.
Emprego
Conseguir um bom emprego hoje em dia não é difícil.
O duro é se manter nele, porque as exigências para
resultados de curtíssimo prazo aumentam cada vez mais.
O tempo médio de permanência num emprego é
de 28 horas. Daí o conceito em moda ser o da habilidade
para saltar de galho em galho, ou "businessbilidade",
que se resume a três fatores: experiência cósmica,
formação galáctica e ser bem relacionado
com quem manda.
Sexo
As diferenças entre sexos não são mais
limitantes para o preenchimento de um cargo. Não porque
tenha acabado a discriminação, mas porque acabaram
os sexos. A antiga classificação "masculino/feminino/outros"
caiu em desuso a partir do momento em que os assim chamados
"homens" e "mulheres" equilibraram seus
níveis de testosteronas e estrógenos. A ambivalência
chegou a tal ponto que hoje os dicionários só
registram a palavra "testículo" como sinônimo
de "pequeno teste aplicado a estagiários".
Hierarquia
Nos tempos primitivos, as posições hierárquicas
eram decididas ou por competência ou por protecionismo.
Mas levava vantagem quem acumulava mais diplomas. Tudo mudou
a partir do momento em que foi implantado o sistema de "Transferência
Integral de Informações", pelo qual qualquer
ser humano, quando completa 2 anos de idade, é acoplado
a um megacomputador DeepBlue e absorve, em 15 minutos, o conhecimento
acumulado pela espécie nos últimos dez milênios.
Tem aí uma novíssima
teoria dizendo que isso nos transformou numa fumaça de
esponjas, e que o grande diferencial atual é saber pensar
por conta própria, em vez de enfiar o dedo no nariz e
dar um "retrieve". Segundo a teoria, há uma
minoria de pensantes que consegue se perpetuar nas chefias porque
tem "Inteligência Psicoemocional", ou seja,
uma combinação balanceada de "instinto",
"conhecimento" e "autocontrole". Eu acho
que já ouvi isso antes, só que não me lembro
bem quando foi.
Relacionamento
Os funcionários têm abertura para se comunicar
fora do trabalho, desde que respeitem o conceito-chave do século
22: Lógica Absoluta, ou seja, os assuntos devem ficar
restritos aos negócios. Sentimentos e emoções,
manifestações consideradas contraproducentes,
estão proibidas desde 2104. Mas sempre tem quem não
sabe aproveitar a liberdade: nosso maior problema social são
os subversivos que se reúnem escondidos para praticar
o maior delito da atualidade: rir e contar piadas. Não
é por acaso que o maior best-seller desta semana é
o cibertexto de auto-ajuda "Você Pode Ser Feliz,
Desde Que Ninguém Saiba".
Internet
A arcaica Internet, uma rede de comunicação que
causou furor no fim do século 20, e que hoje é
citada como exemplo de paranóia coletiva, foi substituída
pela Infernet, à qual todos somos plugados logo ao nascermos.
A palavra veio do latim infernus, "subterrâneo",
uma analogia a seu formato de raízes que alimentam o
caule central. O caule, de onde saem e para onde convergem todas
as informações, é a Suprema Inquisição,
cuja regra é "Todos somos iguais perante Deus".
Sendo que Deus, como todos sabem, é Bill Gates. Embora
corra por aí o boato de que quem manda, mesmo, é
o ACM.
Conclusão
Em meus 144 anos, vi o futuro ir acontecendo, e aprendi pelo
menos uma coisa: as previsões estavam sempre erradas.
Acho que descobri o porquê. Outro dia achei um livro antigo,
que já caiu em desuso por ser a negação
da lógica. De qualquer forma, lá foi escrito,
há milhares de anos, que cada dia é diferente
do outro, exatamente "para que o homem nunca possa descobrir
nada sobre seu próprio futuro" (Eclesiastes, 7,
14).
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