O sertão é do tamanho do mundo

O repórter de Bom Dia refaz, em lombo de mula, viagem
de Guimarães Rosa pelo sertão mineiro percorrendo 248 Km

Por Fernando Piancastelli

Fonte: jornal Bom dia, de Sorocaba-SP
29 junho, 2006

 
Caminho pelas veredas gerais é feito em dez dias em lombo
de mula: 40 vaqueiros conduzem boiada de 198 cabeças

 

João Guimarães Rosa conclui sua obra-prima “Grande Sertão: Veredas” com o símbolo do infinito, enfatizando que as belas histórias do sertão mineiro não terminariam por ali. “O sertão é do tamanho do mundo”, alertara.

Depois de exatos 55 anos, uma comitiva composta por aproximadamente 40 vaqueiros embarcou no dia 17 de maio numa viagem pelo sertão de Minas Gerais.

A intenção era de reviver, da forma mais fidedigna possível, a viagem de Guimarães Rosa que serviu de matéria-prima para as obras “Corpo de Baile” (trilogia que inclui “Manuelzão e Miguilim”) e “Grande Sertão: Veredas”.

Dez dias de viagem para manejar uma boiada de 198 reses (a mesma quantidade da viagem de Guimarães) em exatos 248 km, respeitando os mesmos pousos da empreitada original.

É nessa comitiva que eu, como jornalista do BOM DIA, me aventurei em cima do lombo de Morena, mansa mula pedrês. O grupo saiu da Capela Manuelzão, em Três Marias, rumo a Fazenda São Francisco, em Araçaí.

“É a primeira vez que se revive essa viagem, da mesma maneira que o roteiro original de Guimarães. Fui atrás de suas anotações no IEB (Instituto de Estudos Brasileiros, na USP) para programar o percurso da Comitiva”, explica o jornalista e publicitário Pedro Fonseca, organizador do evento.

Segundo ele, o objetivo principal da viagem é de demarcar um roteiro histórico de Guimarães Rosa “criando condições para que o turismo cultural explore esse sertão apaixonante”.

Direito de 1952

Fazendeiro residente em Sete Lagoas, seu Criolo, 72 anos, era um dos destaques da comitiva, já que era o último vaqueiro remanescente da viagem de 1952.

De pele bastante clara, seu Criolo tinha 17 anos quando acompanhou “Joãozito” (como Guimarães era carinhosamente chamado) em sua saga pelo sertão mineiro. “O Joãozito, que era primo de papai, passou a viagem inteira com a cadernetinha pendurada no pescoço. Não sei como, mas ele nem olhava para escrever. Rabiscava tudo lá... Não sei se ele decifrava depois”, relembra.

Outros descendentes de vaqueiros que acompanharam Guimarães também estavam no grupo: Osmar Pedro Nascimento (filho do vaqueiro Bindóia), Zoroastro Sebastião Moraes (filho de Tião Leite) e José Renato Fonseca Nascimento (sobrinho e afilhado de Manuelzão). “A gente sabia que a viagem não ia ser fácil, não. Por isso, fizemos um casamento de 10 dias pra poder viver essa emoção cheia também de dificuldades”, explicou Zé Renato, capataz da comitiva.

Viagem comprova superação

Trabalho de peão é trabalho pesado. Em 1952, os vaqueiros que acompanharam Guimarães, como seu Criolo, não acreditavam que o escritor iria agüentar a viagem. Agora, depois de 55 anos, três mulheres mostraram que “elas” também podem desbravar o sertão.

“Meu pai achava que Joãozito não iria aguentar a viagem. Não tinha prática nenhuma. Mas ele não quis trocar a Balalaica (mula utilizada pelo escritor) pelo jipe de jeito nenhum”, conta Criolo.

Essa também era a expectativa de todos os peões em relação às três mulheres da comitiva: a publicitária Junia Carvalho Barros, 56, a advogada e fazendeira Cecília Xavier, 26, e a repórter do BOM DIA, a mais inexperiente de todas.

“Punha meu dedo pra cortar, achando que vocês não iam agüentar”, confessou a aposta Zé Renato ao final da empreitada.

Mas não foram dez dias em cima da mula – numa média diária de 7 horas de viagem – , nem muito menos os banhos em córregos gelados, o sol escaldante na pele, os carrapatos, a densa poeira levantada pela boiada, ou o pouco conforto de uma barraca em noites frias, que desanimaram as donzelas do sertão.

Cantada

Por nenhum momento do percurso, as três “froxaram” as rédeas. “O corpo fica cansado, mas a cabeça tá ótima”, explicou Cecília. Quando saiu de Belo Horizonte, a jovem acreditava que além de relaxar a cabeça, iria também perder alguns ‘quilinhos’. “Mas que nada. A gente só come feijão tropeiro e arroz. Eles não têm o hábito de salada e frutas. É coisa pra peão mesmo”.

Além da boa prosa, Cecília diz também que escutou “algumas várias cantadas indiretas”. “São paqueras da roça. Me convidaram pra tomar banho no ‘corgo’ (córrego)”, relembrou.

Mas, fora as cantadas, os vaqueiros também se mostraram muito atenciosos. “Para não machucar as partes debaixo, é só cair parcelado na sela”, explicavam preocupados em dar as boas dicas da roça.

Guimarães Rosa

27.6.1908 - 19.11.1967

Há exatos 100 anos nascia o médico, escritor e diplomata brasileiro João Guimarães Rosa.

Foi por meio da produção de livros e contos com uma linguagem inovadora e recheada de características da fala regional e popular que Guimarães Rosa destacou histórias ocorridas no sertão do país. O escritor é autor de livros como “Sagarana” e “Grande Sertão: Veredas”.

Quando foi eleito por unanimidade para a Academia Brasileira de Letras, em 1963, ele adiou a cerimônia de posse enquanto pôde e afirmou ter medo de morrer no dia do evento.

Só tomou posse em 1967 e morreu três dias depois, no Rio de Janeiro, vítima de um enfarte.

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Música de fundo em arquivo MIDI (experimental):
"Coisas do Brasil" , em variações, de Guilherme Arantes
Nota para a seqüência Midi: *****

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Belo Horizonte, 7 maio, 2009

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