Enviado por Tom Paixão, Belo Horizonte-MG
23 maio, 2010

A vaidade e o vernáculo

"A vaidade se revela nos despreparados, no desconhecimento
do próprio vernáculo ou da língua mãe"

Você lembra do caso do Juiz de Direito que, profundamente ofendido por ter sido chamado de "você" pelo porteiro do condomínio onde mora, entrou com ação no Fórum de Niterói contra o condomínio pedindo, entre outras coisas, indenização por danos morais de cem salários mínimos?

Pois bem, o caso foi finalmente julgado e segue, abaixo, a sentença.


Sentença ao Juiz de Direito que não queria ser chamado de "você"!

PODER JUDICIÁRIO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. COMARCA DE NITERÓI - NONA VARA CÍVEL. Processo n° 2005.002.003424- 4.

S E N T E N Ç A

Cuidam-se os autos de ação de obrigação de fazer manejada por ANTONIO MARREIROS DA SILVA MELO NETO contra o CONDOMÍNIO DO EDIFÍCIO LUÍZA VILLAGE e JEANETTE GRANATO, alegando o autor fatos precedentes ocorridos no interior do prédio que o levaram a pedir que fosse tratado formalmente de "senhor".

Disse o requerente que sofreu danos, e que esperava a procedência do pedido inicial para dar a ele autor e suas visitas o tratamento de "Doutor", "senhor", "Doutora", "senhora", sob pena de multa diária a ser fixada judicialmente, bem como requereu a condenação dos réus em dano moral não inferior a 100 salários mínimos.

(...)

DECIDO. "O problema do fundamento de um direito apresenta-se diferentemente conforme se trate de buscar o fundamento de um direito que se tem, ou de um direito que se gostaria de ter ." (Noberto Bobbio, in "A Era dos Direitos", Editora Campus, pg.15).

Trata-se o autor da ação de Juiz digno, merecendo todo o respeito deste sentenciante e de todas as demais pessoas da sociedade, não se justificando tamanha publicidade que tomou este processo . Agiu o requerente como jurisdicionado, na crença de seu direito. Plausível sua conduta, na medida em que atribuiu ao Estado a solução do conflito. Não deseja o ilustre Juiz, tola bajulice, nem esta ação pode ter conotação de incompreensível futilidade. O cerne do inconformismo é de cunho eminentemente subjetivo, e ninguém, a não ser o próprio autor, sente a mesma dor, e este sentenciante bem compreende o que tanto incomoda o probo Requerente.

Está claro que não quer, nem nunca quis o autor, impor medo de autoridade, ou que lhe dediquem cumprimento laudatório, posto que é homem de notada grandeza e virtude . Entretanto, entendo que não lhe assiste razão jurídica na pretensão deduzida.

"Doutor" não é forma de tratamento, e sim título acadêmico utilizado apenas quando se apresenta tese a uma banca e esta a julga merecedora de um doutoramento Emprega-se apenas às pessoas que tenham tal grau, e mesmo assim no meio universitário . Constitui-se mera tradição referir-se a outras pessoas como "doutor", sem o ser, e fora do meio acadêmico. Daí a expressão doutor honoris causa - para a honra - que se trata de título conferido por uma universidade, à guisa de homenagem, a determinada pessoa, sem submetê-la a exame. Por outro lado, vale lembrar que "professor" e "mestre", são títulos exclusivos dos que se dedicam ao magistério, após concluído o curso de mestrado.

Embora a expressão "senhor" confira a desejada formalidade às comunicações - não é pronome -, e possa até o autor aspirar distanciamento em relação a qualquer pessoa, afastando intimidades, não existe regra legal que imponha obrigação ao empregado do condomínio a ele assim se referir.

O empregado que se refere ao autor por "você", pode estar sendo cortês, posto que "você" não é pronome depreciativo. Isso é formalidade, decorrente do estilo de fala, sem quebra de hierarquia ou incidência de insubordinação. Fala-se segundo sua classe social.

O brasileiro tem tendência na variedade coloquial relaxada, em especial a classe "semi-culta" , que sequer se importa com isso. Na verdade "você" é variante - contração da alocução - do tratamento respeitoso "Vossa Mercê". A professora de linguística Eliana Pitombo Teixeira ensina que os textos literários que apresentam altas freqüências do pronome "você", devem ser classificados como formais. Em qualquer lugar desse país, é usual as pessoas serem chamadas de "seu" ou "dona", e isso é tratamento formal.

Em recente pesquisa universitária, constatou-se que o simples uso do nome da pessoa substitui o senhor/a senhora, e você, quando usados como prenome, isso porque soa como pejorativo tratamento diferente.

Na edição promovida por Jorge Amado, "Crônica de Viver do Baiano Seiscentista" , nos poemas de Gregório de Matos, destacou o escritor que Miércio Táti anotara que "você" é tratamento cerimonioso. (Rio de Janeiro/São Paulo, Record, 1999).

Urge ressaltar que tratamento cerimonioso é reservado a círculos fechados da diplomacia, clero, governo, judiciário e meio acadêmico, como já se disse. A própria Presidência da República fez publicar Manual de Redação instituindo o protocolo interno entre os demais Poderes.

Mas na relação social não há ritual litúrgico a ser obedecido. Por isso que se diz que a alternância de "você" e "senhor" traduz-se numa questão sociolingüística, de difícil equação num país como o Brasil, de várias influências regionais.

Ao Judiciário não compete decidir sobre a relação de educação, etiqueta, cortesia ou coisas do gênero, a ser estabelecida entre o empregado do condomínio e o condômino, posto que isso é tema interna corpore daquela própria comunidade .

Isto posto, por estar convicto de que inexiste direito a ser agasalhado, mesmo que lamentando o incômodo pessoal experimentado pelo ilustre autor, julgo improcedente o pedido inicial, condenando o postulante no pagamento de custas e honorários de 10% sobre o valor da causa.

P.R.I.

ALEXANDRE EDUARDO SCISINIO
Juiz de Direito


Enviado pelo autor, São Paulo - Capital
23 maio, 2010

O Juiz e o porteiro

Por Hugo Guerrato Netto, Oficial de Justiça Federal
E-mail: guerrato@uol.com.br

Há dias, um magistrado deste rincão brasileiro, inconformado com o tratamento recebido de um porteiro de seu condomínio, resolveu buscar na Justiça a reparação pela ofensa à sua honra pessoal.

Proposta a ação, pediu, a um tempo, fosse declarado seu direito de ser chamado de doutor pelo porteiro e este obrigado de assim o fazer. Não obstante, mais uma vez viu-se açoitado, agora pela decepção da improcedência de seu pedido em face da laboriosa decisão que se notabilizou pelo garbo lingüístico e do indefectível entendimento tratar-se de questão que refoge à tutela estatal.

Mas a polêmica merece reflexão, visto que o juiz se sentira ofendido pela forma burlesca com que fora tratado pelo "simplório” porteiro.

E pelo que se infere, a gênese dessa celeuma se deu quando a cobertura de seu apartamento fora alcançado por torrencial chuva que alagou o teto e dependências, exigindo pronto atendimento do porteiro que, após estabelecer inflamado arrazoado, sobranceiro o chamou de cara e você, quiçá por se julgar subestimado por aquele que exigira rápido atendimento pelo fortuito!

Demais disso, em face de o porteiro se reportar à síndica como dona, numa forma de respeito, passou o juiz, semelhante modo, exigir que tanto sua abordagem como a de a seus visitantes se dessem pela forma de doutor, senhor e senhora, ao que adredemente fora desatendido.

Assim, a meu ver duas questões medram desse infausto episódio: a primeira a má qualificação do porteiro, de visível despreparo, decano, pelo visto, de avultada ignorância na abordagem de pessoas, porquanto o local e circunstâncias, eloqüentes por si só bastam para conduzir o mais jejuno dos porteiros a imaginar tratar-se de lugar onde tais moradores requerem tratamento formal.

A segunda porque queira ou não trata-se de um magistrado, credor do respeito social pela altaneira função que desincumbe e, por isso, justo que seu nome seja precedido pelo título de senhor.

Mas de todo evidente que o tributo de respeito que se deve ao juiz não o legitima exigir tratamento de doutor porque isto se afigura, e creio que para muitos, mais carícia ao cargo que ocupa do que importância em ocupá-lo, já que a inversão pode conduzir qualquer cidadão à exícia, pelo anelo de antes ser servido a servir, em contraposição à filosofia do Poder instituído.

Com efeito, exigir que se lhe dê tratamento de doutor é chulice, é importar-se com fatuidade do título em detrimento do essencial, que é transpor os obstáculos naturais nos relacionamentos sempre com primorosa simplicidade de palavras, e não prescindir da forma pedagógica em recambiar situações típicas ao patamar da elegância e lhaneza, próprio dos homens de bem.

Mas creio que em ambos repousa o exacerbado pecado do orgulho; o porteiro porque, renitente, prefere a ignorância aos bons costumes; outro, cultor das ciências e das letras, preocupado com a postura aparente, peca pela vaidade ao acicatar a ignorância do primeiro com impositiva exigência de algo que sobrepuja, em tese, seu berço cultural.

Assim, tenho que o respeito é o que brota da alma e nasce da admiração do exemplo, o vero fanal, restando que ambos merecem reprovação no exato momento em que se colocam acima de suas condições de meros mortais, vez que obnubilados pelo plasma das próprias razões, se furtam da milenar ensinança de Salomão de que a humildade precede a honra.

Ver edição anterior


Música de fundo em arquivo MID (experimental):
"Preciso aprender a ser só
", de Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle
Nota para a seqüência Midi: *****

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Belo Horizonte, 23 maio, 2010

Justiça