Enviado pelo autor, Coronel Fabriciano-MG
1º abril, 2009
Reminiscências
Por
Benedito Franco
1964
Quando houve a revolução
de 1964, no dia primeiro de abril, eu no Rio, ouvi tiros pelos
lados do Palácio da Guanabara estudava logo em
frente, na Rua Paissandu. Seguiam-se as notícias pelo
rádio, donde se ouviam muitos tiros, acho de canhões,
e os gritos do Governador Carlos Lacerda, dando ordens desesperadas
a seus soldados.
Na Rua do Catete, perto de onde
eu morava, vi a Maria Tereza, esposa do Presidente João
Goulart, passar num Mercedes cinza prateado - deu um adeus para
o pessoal que estava no passeio - inclusive eu.
Talvez hora depois, passou o
Sr. João Goulart - mais rápido, pois deixava o
Rio e o Brasil. Sério e compenetrado, deu para perceber.
Em economia aprendi que revolução
é apenas troca de grupos nos governos.
Infância, filtro e banheira
Quando pequeno, em Coronel Fabriciano,
MG, em casa não havia filtro - desconhecia. Tomávamos
água da "biquinha" - uma nascente nas pedras
ao lado da estrada de ferro -ou até mesmo do Rio Piracicaba-
colocada para esfriar numa talha, pote ou bilha.
Na casa de um alto funcionário
da Belgo Mineira, o Sô Messina, conheci o filtro:
- Dona Jandira, o que que é esse negóço
tão bonito aqui?
- Isso é um filtro.
- E serve pra quê?
- Tá vendo aquela
água de chuva empoçada aí no quintal? Se
você colocar aqui na parte de cima, ela vai sair limpinha
aqui em baixo.
- É?... E pode tomá?
Esse o meu primeiro contato
com o filtro d'água - impressionou-me bastante. De barro,
em duas partes, mas envolto em chapa de ferro, pintada e com
algumas pinturas de folhas e flores, tudo sobre uma estrutura
de cantoneiras de ferro - lindo e imponente. Não era
para qualquer um - só mesmo um alto funcionário
da Belgo poderia ter. Naquele tempo, década de quarenta,
um auxiliar de escritório, com o curso primário
completo, era um alto funcionário. Aliás, já
havia visto aquilo na casa do doutor Joaquim, superintendente
da Belgo Mineira, mas não sabia pra que servia.
Visitei meu irmão padre,
Geraldo Ildeo; morava em Igarapemirim, PA, e, em frente à
sua casa, há um caudaloso rio que segue o regime das
marés, apesar de longe do mar. Da casa paroquial avista-se
o rio; a certa hora cheio, correndo para o leste; daí
a pouco o rio esvazia-se e não se avista mais; algum
tempo depois, reaparece, mas correndo para o oeste - e assim
é regido. Ficava atento ao relógio para observar
o fenômeno desconhecido por mim, mas muito bem sabido
até mesmo pelas crianças da região. As
viagens de barcos também seguem os horários das
marés, pois andar contra a corrente, além de atrasar,
gasta-se mais combustível e forçam-se os motores
- as crianças são capazes de lhe indicar o horário
que você pode viajar, e para onde, em um qualquer dia
do mês seguinte.
Nas cafuas, de tábua,
ladeando o rio, tomadas de água por baixo e laterais,
os ribeirinhos usam sua água para banhos constantes e
para tudo, inclusive para beber. Só que o esgoto das
latrinas é jogado diretamente no rio - às vezes
um buraco no meio da sala, acreditem! O rio leva o esgoto e
depois, por causa da maré, o traz de volta. Pensando
nisso, o Geraldo recomendava para que comprassem um filtro e,
para os sem recursos, ele doava. Um deles agradeceu a doação
- argumentou:
- Sô Pade, tem mais
de duzentos anos que a gente moramos aqui e nunca vi falá
que morreu alguém porque não tinha filtro. Será
que vai acontecê só porque o senhô chegô?
Deixa pra lá, porque vai dá muito trabaio, com
esse calor a gente bebe água toda hora.
No internato onde estudei havia
filtros, nos quais era colocado um produto químico (seria
salitre, como chamávamos?) tornando a água salgada
e, diziam, servia para acalmar a meninada em seus arroubos da
juventude. O banho de água fria também ajudava,
mas, como em Congonhas faz muito frio quase o ano inteiro, difícil
agüentar. O que fazer - os estudantes não tínhamos
saída.
Autoridade e violência
Fabriciano, MG, nem Fabriciano
era...era o Calado até que era, mas todo mundo
ainda falava Calado. No Calado havia uma pequena cadeia, com
dois soldados e o chefe, o Cabo Arimateu.
A cadeia, com uma pequena sala
de entrada, uma pequena cela e um cômodo menor ainda:
a sala do delegado. Nem latrina tinha, aliás, tinha:
um quintal um corredor a céu aberto, que servia
de latrina. Nem água e nem luz. Com tanto nem, deu para
perceber a pobreza do lugar...
Quando menino, ouvia-se dizer
que, pela Lei, qualquer cidadão, que praticasse algo
errado poderia ser preso não só por policiais,
as únicas autoridades do lugar, mas por qualquer outro
cidadão - papai confirmou-me.
Naquela manhã, o lugarejo
agitava-se como nunca. Uma desavença aqui, uma briguinha
ali, uma briga acolá e um tumulto no final da rua.
O Cabo Arimateu ficou alerta.
Conversava pouco, e com poucos, com fama de muito violento com
os presos; depois de prendê-los, mesmo na rua, quando
levados para a cadeia, dava-lhes uns tapas e pescoções.
Envergonhados, e temendo mais represálias dentro da cadeia,
os presos comportavam-se como cordeiros acorrentados.
No dia anterior, houve uma partida
de futebol. O jogo fora terrível e a briga empatada:
4 x 4 - quatro mortos para cada lado - morreram oito! Verdade.
Em Figueira, hoje Governador Valadares, seria bem pior: morreriam
oito de cada lado!
Eu bem pequeno, com uns seis
ou sete anos, encontrava-me dentro do balcão da loja,
quando vejo grande movimento na rua e um tremendo barulhão.
Pessoas, com gritos de medo e pavor, corriam em uma direção,
fugindo de algo. O pessoal passava, e passaram alguns segundos,
quando vi vir rumo à loja dois caras correndo. O de trás
com uma faca numa das mãos. O perseguido entrou na loja
e o perseguidor, furioso, atrás. O pobre coitado, sem
opção de fuga, no embalo, saltou por sobre o balcão,
mas foi pego na barriga, ainda no ar, pela peixeira do cabra
da peste.
Eu dentro da loja, ainda deu
para ver as tripas do agredido saindo e ele cair a meu lado
- entre o balcão e a prateleira.
A balbúrdia aumentada
pelo grito de dor do ferido. Estupefato e apavorado, escondi-me
no canto debaixo do balcão.
De repente, chegou papai que
se encontrava no interior da loja e, ao mesmo tempo, o Cabo
Arimateu que foi logo pegando e empurrando o agressor contra
as paredes e portas, deixando-o mole. Outros, com papai, socorreram
o ferido - resistiu por pouco tempo.
O Cabo foi com o preso em direção
à Delegacia, agredindo-o com chutes, pescoções
e cassetetadas. Quando o pobre e infeliz sujeito não
agüentava mais andar, com um tremendo palavrão,
o Cabo deu-lhe dois tiros pelas costas.
Mais tarde, o Cabo começou
a andar, exatamente no meio da rua, todo posudo, com dois revolveres
na cintura. O povo, com medo, disfarçava, passava o mais
longe possível, ou se escondia.
No dia seguinte bem cedo, quando
se abriam as lojas, apareceu o Cabo com a cabeça erguida
e os dois revolveres. Deu esbarrões em quem passava por
ele e afirmou que acabaria com a bagunça na vila. Essa
apresentação de otoridade e valentia durou umas
duas horas.
Papai ainda jovem, consideravam-no
um conciliador e um conselheiro do lugarejo. Algumas pessoas
indagaram de papai como agir. Se deveriam, e como, comunicar
às autoridades de Antônio Dias, a sede do Município
- o Calado nem Distrito era, era apenas uma Vila.
Papai, um cidadão comum,
diante da apreensão de todos, resolveu agir. Quando o
Cabo Arimateu passou em frente à loja, foi a seu encontro:
- Esteja preso! Vá
na minha frente, até a cadeia. Vou lhe prender!
O Cabo tremeu nas bases, estatelou-se,
perdeu a cor - obedeceu. O
povo veio atrás boquiaberto. Chegando à cadeia,
papai lhe ordenou:
- Cabo, pega a chave, abre
a cela, entra, tranca a porta e me dá a chave!
Os covardes obedecem...
A canjiquinha
Adoro canjiquinha. O
dicionário do Aurélio omite a palavra canjiquinha
como nós mineiros a conhecemos - fala apenas em canjica
doce, feita de milho verde, igual à usada nas festas
juninas, ou de canjica, um aglomerado de colônias de bactérias.
Em Minas, comemos a canjiquinha
de milho moído no "muinho", com grãos
de um a dois milímetros - quase um fubá grosso,
sem o fino e o farelo. No sul do país chamam-na de quirera
- comida no inverno, para aquecer. No nordeste é pouco
conhecida - deve ser por causa do calor.
Canjiquinha, em Minas, era comida
de escravos, assim como a feijoada - embora hoje teimam em desmentir
- pois o pessoal da Casa Grande alimentava-se raramente das
costelas e dos miúdos de porco. Feijoada - ótimo
alimento com muita proteína, energético para serviço
pesado. O tutu, o angu ou polenta, o torresmo e a couve picada...
e mais um pedaço de laranja, seu ácido e bagaço
para ajudar na digestão...
A primeira vez em que me lembro
de ter comido canjiquinha foi quando, eu muito pequeno, esteve
lá em casa a minha avó, Vovó Olinda mãe
de papai, e apareceram para visitá-la duas senhoras pretas.
Uma delas bem velhinha, a outra era filha, e que tinha sido
escrava de uma parenta da Vovó. Vovó até
me falou da importância de eu estar conhecendo uma antiga
escrava. A filha, embora tenha nascido antes da Lei Áurea,
não se considerava antiga escrava porque nasceu quando
a Lei do Ventre Livre vigorava. Papai dizia que essa parenta
gostava que seus escravos andassem bem limpos e com roupas únicas,
isto é, com pano do mesmo padrão, diferentes dos
escravos das outras famílias. Encomendava aos comerciantes
peças e mais peças de pano - chita para as mulheres
e brim para os homens - cujo padrão não poderia
ser vendido para mais ninguém da região de Antônio
Dias, MG. Além disso, seus escravos andavam de sandálias,
coisa impensável na época, isto é, escravos
calçados - após a Lei Áurea, todos eles
continuaram em sua fazenda, livres e espontaneamente.
Tia Zelica, irmã da mamãe,
preparava a canjiquinha como se fosse um arroz, solta e seca
- uma delícia.
Nos botecos prepara-se a canjiquinha
com muitos temperos e costelinha de porco - às vezes
lingüiça, ou torresmo quase sempre - servida bem
mais rala do que em casa e com bastante cebolinha verde. Chamam-na
de caldo de canjiquinha. Encontrada nas lanchonetes nas beiradas
das estradas, onde costumam ter caldo de feijão temperado
- feijão gordo - vaca atolada e caldo de mocotó.
Quando posso, regalo-me com essas delícias.
Na canjiquinha, as imprescindíveis
costelinha e cebolinha verde, acompanhadas de feijão.
Mamãe preparava-a um pouco mais grossa. Endurecia quando
esfriava e então se podia comê-la em pedaços.
O Sô Caetano, meio mulato,
gostava de me chamar de preto, por eu ser o menos branco lá
de casa, principalmente porque estava sempre ao lado do meu
irmão loiro, o José Maurício - o contraste
das cores realçava-as. Provocava-me, encaminhando a conversa
para o lado da alimentação, e quando eu iria retrucar
algo, cortava-me:
- Preto não tem
escolha: ou come canjiquinha ou morre de fome ou...
- Deixe de conversa fiada,
satisfeito da vida, coma canjiquinha que é a comida de
preto e dê graças a Deus de ainda ter canjiquinha
pra comer.
Aproveitava e soltava uma ladainha
de frases provocadoras, inclusive dizendo que me levaria à
sua casa, mas só no dia que a Dona Maria preparasse a
bendita canjiquinha - promessas e mais promessas, nunca cumpridas.
Afrontava-me mais:
- Três coisas em que não se pode confiar: Em burro
queimado de nego, em horta em cima dum rego e
em preto chamado Nego!
Com a pouca idade, engolido
por seus argumentos, gostava dele assim mesmo - acho que pela
atenção que sempre me dava - e até ficava
com vontade de ir à sua casa comer canjiquinha.
Provocação devida
pelo fato de meu pai, de quando em vez, chamar-me de Prego ou
de Nego. Ganhei esse apelido quando, bem pequeno, tive furúnculos
por todo o corpo - inexistiam os antibióticos. No lugar
de cada um formou-se uma mancha escura, parecida com uma cabeça
de prego enferrujado numa tábua. Falam que sofri muito.
Meu irmão Antônio
Élcio chamava me de Prego, Preto ou Nego.
Papai tinha um primo, de quem
gostava muito, parece-me de parentes mais bem de vida - gente
fina - o Senhor Deolindo.
Quando o Senhor Deolindo ia
à nossa casa era muito bem tratado e até com uma
certa cerimônia - papai fazia questão. Sr. Deolindo
e senhora, de quando em vez, dormiam em nossa casa. Acho que
as únicas pessoas que dormiram lá, não
sendo tios ou avós, pelo menos que eu me recorde.
Um dia mamãe, uma senhora
cozinheira, preparou canjiquinha e o Sr Deolindo apareceu. Comeu,
gostou e elogiou. Mamãe detestou, pois considerava-se
a canjiquinha alimento de gente pobre.
Passados alguns dias, mamãe
fez de novo a canjiquinha, a pedido de papai. E quem apareceu
por lá, exatamente na hora do almoço?... O Sr.
Deolindo.
Visitando-nos um mês depois,
o Sr. Deolindo encontrou prontinha da silva, a senhora canjiquinha.
Mamãe tomou ódio
de canjiquinha. Não atendia nem aos apelos do papai e
muito menos aos meus. Ainda bem que, com o passar do tempo,
voltou atrás. Todos nós irmãos adorávamos!
Uma pratada de canjiquinha,
pelando de quente, com costelinha e feijão, mais cebolinha
e torresminho por cima...e mamãe ainda colocava pedaços
pequenos de queijo-minas curado... Uma delícia! Dá
pra lamber os beiços!
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"Bananeira, de João Donato
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