O muro americano

Viagem pela fronteira do mundo global
(continuação)

Reportagem e fotos de Carlos Alberto de Azevedo

As maquiladoras

Em Tijuana, como em Ciudad Juarez, em Nogales, Nuevo Laredo, Reynosa, Matamoros, as maquiladoras são o acontecimento da década. Seu número chega a 800 na área de Tijuana e Mexicali, 100 em Nogales, 350 em Ciudad Juarez, 60 em Nuevo Laredo, 100 em Reynosa, 120 em Matamoros, e assim por diante. Números provisórios porque, a cada mês, surgem outras. Nos últimos anos, já não ficam somente na região de fronteira, vão se instalando mais para o interior, em Chihuahua, Monterrey, Guadalajara e outras localidades.

  Para o jornalista Arturo Solis ,
de Reynosa, as maquiladoras não fazem parte de economia mexicana

Mas quem se encomoda com isso? Todo mês novas empresas chegam ao país...  

Maquiladoras, como o nome indica, são empresas de montagem e acabamento de produtos para exportação, instaladas em território mexicano. A grande maioria é norte-americana, mas há também japonesas, canadenses, coreanas. Elas trazem peças e componentes, que foram fabricados em outros países, para montar os produtos no México. Principalmente eletro-eletrônicos, peças de automóveis e têxteis (peças para serem costuradas). Montados, os produtos são embalados, embarcados em caminhões, trens, aviões e exportados para os Estados Unidos e outros mercados.

Esse não é um fenômeno puramente mexicano. O México é um exemplo, talvez o mais evidente, de um processo em escala mundial. A persistente queda de produtividade na indústria dos EUA tem empurrado suas empresas a espalharem-se pelo mundo em busca de redução de custos. E a forma mais óbvia e aparentemente a mais bem-sucedida de alcançar esse objetivo tem sido desfrutar dos baixos salários da força de trabalho dos países do Terceiro Mundo. Processo que tem outra conseqüência: a concorrência dos baixos salários além-fronteira enfraquece o movimento sindical norte-americano, reduz o poder de negociação dos sindicatos. E tem contribuído efetivamente para conter o aumento do valor dos salários não só na indústria, mas nos serviços e em toda a economia interna dos Estados Unidos.

Daí, numerosas empresas norte-americanas terem encerrado atividades nos Estados Unidos ou transferido pelo menos partes de suas linhas de produção para o México e para países da Ásia e da América Latina. Pelo sistema adotado, uma de suas plantas fabrica um componente em Hong Kong, por exemplo, que será inserido no produto de sua filial de Tijuana. E o que se acrescenta ao valor do produto em cada etapa é o valor do trabalho novo agregado. Isso é tanto mais lucrativo quanto menor for o valor da força de trabalho nele aplicada.

Tal tendência tem mostrado ser o caminho da sobrevivência da indústria norte-americana. E, salvo um cataclisma que reverta todo o processo, essa industrialização globalizada parece ser um caminho sem volta.

As primeiras maquiladoras chegaram ao México em 1965. No início, tiveram um progresso lento. Depois, o incremento foi se acelerando. Em novembro de 1994, um mês antes da crise que derrubou a economia mexicana, as maquiladoras já eram 2.163 e empregavam 497 mil trabalhadores. Com a crise, os juros repentinamente altos levaram à bancarrota 28 mil pequenas e médias empresas mexicanas. E dois milhões de empregos desapareceram. Mas as maquiladoras não foram abaladas, muito ao contrário.

O outro lado da débâcle mexicana foi a desvalorização do peso em 27 por cento, que significou uma desvalorização igual do valor real dos salários, que foram ficar entre os mais baixos do mundo. E tornaram o México ainda mais atraente para as maquiladoras. Sem contar outras vantagens: a eliminação das barreiras alfandegárias por meio do NAFTA, o Acordo de Livre Comércio da América do Norte, que acabava de ser assinado; a desorganização do movimento sindical dominado pelo peleguismo; e um crescente afrouxamento do governo mexicano no que se refere às exigências quanto à proteção ao meio ambiente.

É sabido que os salários na Ásia são baixos. Mesmo assim, antes da crise que no final de 1997 se abateu sobre os "tigres" asiáticos, os salários no México eram muito mais baixos. Dados comparativos de salários na indústria maquiladora, em fins de 1996, em dólares por hora:

O salário real continua caindo. A taxa de inflação anual no México anda pelos 15%, enquanto o reajuste salarial anual tem sido de 5%.

O resultado foi explosivo: depois da crise mexicana, houve uma corrida das maquiladoras para o México, em busca da força de trabalho barata. Assim, comparando com 1994, o salto foi espetacular: no final de 1997, as estimativas eram de que estavam implantadas no México 3.650 maquiladoras e o número de empregos havia dobrado. Agora elas empregavam 1 milhão de trabalhadores. A taxa de crescimento do emprego nas maquiladoras nos últimos dez anos tem sido de 12% ao ano e a tendência se manteve em 1997.

A maioria são empresas norte-americanas, mas até mesmo empresas da asiáticas se encorajaram a tirar vantagem das excepcionais condições oferecidas pelo México. As maquiladoras usam alta tecnologia e métodos sofisticados de organização do trabalho. Esse fato, associado aos salários baixos e com valor real decrescente, resulta num consistente incremento de produtividade. E tem mais, ao instalar-se na fronteira, essas empresas ficam na vizinhança do maior mercado do mundo, o norte-americano. Não é por outra razão que a maior de todas as fábricas da Sony instalou-se ali.

Após o NAFTA, as condições são ainda mais promissoras, porque esse acordo inclui disposições no sentido de liberar progressivamente a venda dos produtos das maquiladoras também para o mercado mexicano, que é um país de 96 milhões de habitantes, habituados aos produtos da indústria norte-americana e japonesa.

Atualmente, com atividade em 30 Estados, as maquiladoras já representam uma considerável parcela da economia mexicana, se é que podem ser consideradas parte efetiva dessa economia (não usam matéria-prima, nem componentes, nem peças, nem ferramentas mexicanas; tudo vem de fora, exceto papel e papelão para embalagem, energia elétrica, petróleo e água). As maquiladoras participam com 15 por cento do valor da produção da indústria manufatureira. E são responsáveis por 50 por cento de todas as exportações do país.

Os defensores da presença das maquiladoras no México citam efeitos indiretos dessa presença, como o desenvolvimento da infra-estrutura e da indústria da construção, com as novas rodovias e aeroportos, prédios e casas, instalação de modernos sistemas de telecomunicações.Dizem que o nível de educação tem se elevado porque as maquiladoras demandam trabalhadores mais treinados, razão da implantação de centros de treinamento técnico e escolas no País.

O que pensam os trabalhadores disso tudo? A maior parte das maquiladoras de Tijuana concentra-se num distrito industrial implantado especialmente para elas. Chama-se Mesa Atay. Por quilômetros, as empresas se sucedem umas às outras. Em muitas, vêem-se faixas de "precisa-se" de empregados, ao lado de faixas de louvor pela conquista de certificados do tipo ISO 9002.

O outro lado dessa história quem conta são as coordenadoras da "Casa de La Mujer", uma organização ligada ao PRD para defesa dos direitos das mulheres trabalhadoras. Ali fico sabendo que nada menos que 66 por cento dos trabalhadores das maquiladoras são mulheres.

Carmen Valadez, coordenadora, critica a situação de exploração dos trabalhadores, mulheres e homens: "O ritmo de produção é extenuante (resultado dos programas de "qualidade"); há falta de segurança, falta de proteção à saúde, o que leva à contaminação por produtos químicos. Já comprovamos, através de uma investigação realizada pela organização internacional Human Rights Watch, que a discriminação contra trabalhadoras grávidas é prática generalizada, assim como o abuso sexual".

Carmen continua: "As jornadas de trabalho são variáveis segundo as necessidades e conveniências da empresa, freqüentemente sem pagamento de horas extras. Grande número de maquiladoras são têxteis e as costureiras têm os piores salários: cerca de 4 dólares por dia. Os outros ganham de 5 a 6 dólares por dia em média. E a alta rotatividade é a regra: é comum trabalhadores que em poucos anos já passaram por dez a quinze empresas. São demitidos a qualquer momento, sem motivo, e não têm direito à indenização. A alta rotatividade visa manter ou reduzir ainda mais o baixo padrão salarial. Isso é o que se chama desregulamentação do mercado de trabalho".

Segundo ela, os sindicatos oficiais, ligados ao PRI, partido do governo, omitem-se, evitam manifestar-se, pois não querem criar dificuldades para as maquiladoras. E, tanto quanto as empresas, pressionam a Justiça do Trabalho para não autorizar a organização de sindicatos independentes. Tanto que em todo o México, até agora, só foram organizados dez deles. E um único em Tijuana, inaugurado poucos dias antes de minha chegada. No mais, é como se o movimento dos trabalhadores tivesse voltado cem anos no tempo: assembléias nas ruas, passeatas, greves espontâneas que terminam com a demissão dos que são identificados como "cabeças".

Nas raras ocasiões em que os trabalhadores conseguem o mínimo de organização suficiente para pressionar a empresa, esta ameaça fechar as portas e transferir-se para outra cidade. Segundo Carmen Valadez, pelo menos uma empresa coreana fez isso. Fechou em Tijuana e mudou-se para uma cidade do interior, La Paz, em busca de trabalhadores mais baratos ainda e mais "compreensivos": "O Prefeito de La Paz fez uma festa. Em seu discurso cumprimentou a empresa por ser ‘reconhecidamente respeitadora dos direitos dos trabalhadores’. Só se for a partir de agora, porque até hoje não foi".

Rumo a El Paso

Voltei à rodovia 10 e viajei 350 quilômetros para sudeste. Deixei o Novo México e entrei no Texas. Meu destino é El Paso. Nesse exato ponto, o Rio Grande (Rio Bravo del Norte, para os mexicanos) alcança a fronteira. Suas águas escuras já chegam poluídas do interior dos Estados Unidos. É uma torrente estreita, não excede aos 60 metros em largura, mas corre veloz separando El Paso de Ciudad Juárez.

 
 

O Rio Grande separa as duas cidades. Neste ponto da fronteira cruzam 6 milhões de pessoas por mês

As bandeiras marcam fronteira em
El Paso e Ciudad Ruarez

Aqui estão acontecendo dois grandes movimentos. O primeiro é o alucinante ritmo de crescimento de Ciudad Juárez: de uma população de 400 mil em 1970 para 800 mil em 1990. E, em 1997, seus habitantes já são estimados em 1 milhão e meio. Pode até ser mais, porque as autoridades mexicanas perderam o controle da onda migratória. São levas chegando todo dia e ocupando desordenadamente terrenos nas encostas dos morros. Buscam emprego nas maquiladoras. Vêm dos empobrecidos Estados do sul, deixando atrás de si povoações e lavouras abandonadas. Das colinas de El Paso, o panorama que se tem de Ciudad Juárez lembra um formigueiro. Mas El Paso também cresce. Sua população duplicou em vinte anos.

O segundo movimento é o entrelaçamento das duas cidades, mais que interdependentes, formando um amálgama econômico, racial, político, cultural. Os principais empresários e políticos de El Paso são descendentes de mexicanos. Os negócios começam de um lado e terminam do outro. As línguas se misturam até nas emissoras de rádio, que alternam a locução em inglês e o anúncio em espanhol. Pelas várias pontes que unem as duas cidades, registram-se mais de 70 milhões de entradas de pessoas por ano. É que grande parte dos habitantes de Juárez trabalha em El Paso. Quem trabalha nas maquiladoras são os imigrantes que vieram do sul. É como uma escadinha para o paraíso ianque do consumo.

Em Ciudad Juárez, conheci Alex Perez, um tipo índio, pele morena escura, alto e forte, 27 anos. Já viveu sem documentos nos Estados Unidos, depois trabalhou por mais de dez anos em maquiladoras, passou por mais de 20 delas, organizou movimentos reivindicatórios, participou de greves. Hoje se autodefine como organizador dos trabalhadores. É um militante profissionalizado da Frente Autêntica do Trabalho, uma entidade de origem católica, próxima da Teologia da Libertação, cujo objetivo é a livre organização dos trabalhadores, independente dos partidos e do governo.

Ele me mostra uma das treze áreas industriais da cidade, o Parque Industrial Bermudez, a maior concentração de maquiladoras de Juárez. Caminhamos entre dezenas de fábricas por duas horas num lugar onde, segundo suas palavras, "há três anos, só havia areia e pedra".

Se há emprego aqui, porque continuam imigrando? – pergunto. Alex não tem dúvida de que o impulso maior que empurra os mexicanos para os Estados Unidos é a necessidade. Mais do que o desemprego, que também há, os salários são baixos demais para permitir uma vida minimamente digna. Ele mesmo, quando mais jovem, cruzava a fronteira ilegalmente para ir trabalhar em El Paso. Conta que sempre havia trabalho: pintar uma casa, aparar a grama. Ou então, trabalhava à noite na faxina de bares, restaurantes, cinemas, fazendo parte da multidão invisível que de manhã estava de volta ao México, cada um com 60 dólares (12 horas de trabalho a 5 dólares por hora): "Compare isso com o salário médio nas maquiladoras: 4,5 dólares por dia (35 pesos) por uma jornada de 9 horas. Quer dizer, numa hora de trabalho nos Estados Unidos, ganha-se mais do que num dia inteiro de trabalho aqui".

Vamos passando diante da Sanyo, Alex comenta: "Os japoneses são os mais "negreros" (exploradores). Promovem jornadas de trabalho de ritmo extenuante". Em frente à fábrica de lâmpadas Silvanya, lembra que ali participou de uma greve de dois dias. Aponta a RCA: "Essa fábrica tem história. Trabalhei vários anos aí. O gerente era muito "negrero". Como sempre, "corrieran comigo" (me demitiram)". E assim vai falando da GE, da Zenith, da Sony...

Digo que quero conhecer sua casa. Viajamos em pé num ônibus lotado. A viajem demora quase uma hora. Passamos por belos bairros, restaurantes finos, depois por bairros populares. O asfalto acaba, o ônibus começa a subir pelos cerros. Descemos no fim da linha, no alto de um morro. Caminhamos por ladeiras até sua casa, cinzenta, cor de terra, feita de terra. As paredes são baixas, de adobe, grande tijolos feitos à mão com barro e gravetos. O teto é do mesmo material, acrescentado de cimento. A casa tem dois cômodos. Num, fica a cozinha, onde mora a sua sogra. No outro, vive com a mulher e dois filhos, um quarto grande, de chão cimentado, sem mesa, nem cadeiras. Só a cama de casal e outra, de solteiro, encostadas uma na outra. Uma cômoda, um armário para as roupas e, destoando de tudo, uma bela cristaleira, certamente herança de família. E uma velha televisão preto e branco, sempre ligada.

Cláudia, sua filhinha de dois anos, vem correndo e pede colo. Alexandre, de 6 anos, está fazendo a lição da escola. E Verônica, a esposa, jovem e comunicativa, dá uma arrumada na casa. Às dez da noite, deverá sair, pegar o ônibus para ir trabalhar numa maquiladora das onze e meia às 6 horas da manhã. Na volta, cuida da casa, vai levar e buscar o filho na escola. Dorme apenas cinco horas e só encontra com o marido das sete às dez da noite.

Alex ganha 50 dólares (400 pesos) por semana. Verônica recebe um pouco mais do que a média de seus colegas, 43 dólares (350 pesos) por semana. Mesmo assim, o salário dela é insuficiente para pagar a feira do sábado, que é de 50 dólares (400 pesos). Alex completa e paga as outras despesas – aluguel, gás, água, luz, transporte, remédios. E quase não sobra nada para comprar roupas e outros confortos mínimos. Com isso vivem, humildemente, os cinco – casal, filhos e sogra. Alex comenta que trabalha desde menino e não tem nada. Essa parece ser a parte que lhe cabe no "milagre" das maquiladoras.

As maquiladoras pagam os salários na sexta-feira às 3 e meia da tarde. Uma hora depois, milhares de moças e rapazes começam a invadir a avenida Benito Juárez, a rua central de Ciudad Juárez. São trabalhadores das maquiladoras. As moças vêm de minissaia e muito pintadas (maquiladas, elas também). Os rapazes, de roupa nova e gel no cabelo. Querem divertir-se numa infinidade de salões de dança, bares e cabarés que já os esperam com portas abertas, muitas luzes e música alta. Dançam salsa, merengue e rock até o amanhecer. Consomem álcool, cocaína, maconha e outras drogas. Há brigas e muita violência policial. Quando se vão, deixam ali parte, senão todo o salário da semana.

"Formar uma consciência operária e promover a organização sindical dessa gente vai ser um trabalho de muito anos", prevê com ar conformado, mas decidido, Beatriz Lujan, coordenadora da Frente Autêntica do Trabalho em Ciudad Juárez.

Sindicato, direitos, greve, quem quer saber disso? Acabaram de chegar do interior paupérrimo, descobriram um mundo novo, estão fascinados por ele. E essa é a melhor parte do que lhes cabe no "milagre" das maquiladoras.

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Música de fundo em arquivo MIDI (experimental):
"Dance of the mirlitons", de Tchaikovsky

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Belo Horizonte, 15 de novembro de 2003

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