O muro americano

Viagem pela fronteira do mundo global
(continuação)

Reportagem e fotos de Carlos Alberto de Azevedo

Final da viagem

Saí de El Paso pela rodovia expressa 10, mas logo a deixei, seguindo pela rodovia 90, e depois pela 67, rumo a Presídio e Ojinaga. Mergulhei de novo em imensos vazios silenciosos, ao longo de 450 quilômetros. Presídio é uma pequena cidade num lugar desolado. Ao entardecer, passei para Ojinaga, a cidade mexicana vizinha. Há extensas áreas de agricultura irrigada nas margens do Rio Grande. E muitos pássaros, bandos de paturi, aves de arribação que devem estar se preparando para viajar ao sul escapando do inverno. E mergulhões e urracas, o pequeno corvo do Norte, fazendo em grupo vôos acrobáticos.

Encontrei alguns homens trabalhando ao ar livre, esculpiam lápides de sepulturas enquanto tomavam cerveja Corona sem gelo. Batemos um papo. Hector Carrasco, o patrão, disse que ainda não viu as vantagens do Tratado de Livre Comércio. O que tem reparado é que "as coisas estão muito paradas. Enquanto os caminhões passam pra lá e pra cá, o povo está mais pobre".

Um homem se junta à roda. Cumprimenta a todos. Abre uma garrafa, toma um bom gole de cerveja. Diz que se chama Arturo Castillo de Leon e que é de Monterrey. Conta que no ano passado entrou ilegalmente nos Estados Unidos, pelas montanhas, na região de Del Rio. A caminhada demorou vários dias. A comida e a água que seu grupo havia levado acabaram-se em pleno deserto. Enfrentaram muito calor de dia e congelaram à noite. Arturo conseguiu chegar às cidades, onde trabalhou como artesão e mecânico de automóvel. Ganhava bem, 60 dólares por dia. Mas foi apanhado pela "migra" e deportado. Agora trabalha em Ojinaga preparando a terra para lavoura por um salário insignificante. Reclama que a terra é dura e é difícil arrancar o mezquite, uma planta nativa, que fixa raízes profundas no solo. Não vê futuro nesse trabalho. E, como o frio já está chegando, pretende arrumar uma carona num caminhão para passar o inverno em Monterrey.

No entusiasmo da conversa diz "tu não imaginas..." falando com o velho Hector Carrasco. Este o adverte de imediato: "Não podes usar tu comigo...", naturalmente porque Arturo é um pobre diabo. Ele se desculpa e continua contando sua história. Eu fico com pena desse homem tão humilde, que ainda assim quer ser generoso comigo: despede-se lembrando de Pelé, "o maior jogador de futebol do mundo!" Olho para o imenso céu azul, para aquele sertão sem fim que esmaga a ínfima vila de Ojinaga. E reflito sobre a fatuidade humana.

Seguindo viagem, passei por Redford, onde, em 20 de maio de 1997, fuzileiros navais em operação de combate ao tráfico de drogas atiraram e mataram um mexicano de 20 anos, Ezequiel Hernandez Jr. As forças militares dos Estados Unidos são proibidas de tomar parte em ações policiais domésticas, por uma lei da época da Guerra Civil. Mas desde 1980, uma força-tarefa dos Fuzileiros Navais vinha dando apoio à ação da Border Patrol contra o tráfico de drogas na fronteira. O incidente repercutiu, a ação dos militares foi suspensa e, no final de outubro, foi definitivamente cancelada. O Congresso rejeitou um projeto de autorização para as forças armadas participarem da guerra contra os cartéis mexicanos da droga, embora houvesse uma grande pressão dos conservadores.

  Na manhã seguinte, entrei no Parque Nacional Big Bend, uma grande reserva natural que fica no ponto em que a fronteira forma um cotovelo para dentro do México, acompanhando os canyons que o Rio Grande escavou na Sierra Madre Oriental. É o lugar mais distante e isolado de toda a viagem. A paisagem montanhosa e agreste forma um cenário grandioso.

Apesar do isolamento, as estradas são ótimas, mas não se pode rodar a mais de 60 quilômetros para evitar atropelamento de pássaros e pequenos animais. Fui pelo parque adentro até encontrar o Rio Grande. A escarpa do canyon tem mais de duzentos metros de altura. Nessa região selvagem, certamente as autoridades norte-americanas não precisam se preocupar com a entrada de imigrantes ilegais. Atravessei o parque de lado a lado, tomei a rodovia 385. Em Marathon, voltei à rodovia 90 e continuei rumo a Del Rio, um trecho de uns 500 quilômetros.

Parei num posto de gasolina para abastecer e tomar café. Era um descampado e o vento assobiava arrastando grãos de areia. Do lado de fora, ninguém. Dentro da loja, no caixa, um cinqüentão, alto e magro, vestido como rancheiro, cinturão largo, botas. A cafeteira estava vazia, pediu que eu esperasse, ia fazer um café. Além de cuidar do posto de gasolina, tem um rancho para os lados da fronteira. John Jones é seu nome. Disse que passam centenas de ilegais por dia pela região e que os texanos estão muito preocupados com isso.

Em sua opinião, a imigração ilegal tem de ser contida. Para ele, os imigrantes sobrecarregam o sistema de saúde, de educação, transporte, habitação e de assistência social do País, rebaixando o nível de vida da população. "E a questão do emprego, então? Aqui já não há tanto emprego e eles vêm disputar empregos com os trabalhadores norte-americanos. E, pior: não aprendem a falar inglês, nem fazem força para aprender. Vão formando uma segunda língua, um gueto racial, uma minoria dentro da região. Aqui a língua é o inglês. Então, por que não aprendem? Não têm fidelidade a nosso País."

Qual seria a solução? "Não sei. Mas isso tem de parar, nem que os Estados Unidos ajudem o México a criar emprego para seus cidadãos lá. A pobreza e o desemprego no México são problemas dos mexicanos, não são nossos. Mas estão querendo transferir para os Estados Unidos. Os norte-americanos estão resistindo a isso e vão resistir de várias maneiras." Esse discurso tem ampla difusão entre a população do Oeste. Porém, as mesmas pessoas que dizem isso são as que têm imigrantes ilegais como empregados em suas empresas, lavouras e fazendas. Grande parte da força de trabalho texana é composta de mexicanos. Afinal, querem-nos ou não os querem?

O dilema vai além do querer ou não querer. Na agricultura, por exemplo: um quarto da lavoura de grãos dos Estados Unidos tem de ser colhido à mão. E norte-americano não faz esse trabalho. Sem o braço do imigrante, o preço dos morangos da Califórnia, da laranja da Flórida e das maçãs de Washington, só para lembrar alguns produtos, iriam para o espaço sideral. Especialistas do setor chegam a dizer que alguns vegetais e frutas não teriam condições de ser cultivados nos Estados Unidos sem o trabalho dos imigrantes. E esse quadro se repete em outros setores da economia, como na indústria de construção civil, nos serviços de limpeza pública, na hotelaria, nos restaurantes, bares, casas de diversão, lojas de comércio e assim por diante.

Apesar disso, a oposição à imigração tem respaldo em setores do Congresso, que desenvolvem a tese de que há uma conspiração mexicana com vistas a uma paulatina retomada dos territórios perdidos na guerra de 1848. Uma ocupação disfarçada, que já ocupa extensas áreas dos Estados Unidos, seguindo uma orientação terceiromundista e comunista, dizem.

A repulsa ao estrangeiro não se limita ao mexicano, volta-se contra outros migrantes latino-americanos e asiáticos, cujo fluxo migratório, tanto legal quanto ilegal, se intensificou nos últimos anos. É inegável que a opinião pública norte-americana é hoje mais refratária ao imigrante. Ironia da História, porque esse é um país de migrantes. Essa nova atitude repercute no Congresso e no governo. A conseqüência é o crescente rigor das leis de imigração e das ações de repressão na fronteira, onde esse clima de preconceito e desconfiança é mesclado com manifestações de euforia. Setores do empresariado local nas cidades dos dois lados da fronteira estão satisfeitos com a parceria. Por exemplo, naquela mesma tarde, quando cheguei a Del Rio encontrei um clima festivo. Topei com alguns carros alegóricos na avenida principal. Eram preparativos para o "Abraço da Amizade", uma festa anual que reúne as duas cidades-irmãs, Del Rio e Ciudad Acuña. O desfile começa na cidade mexicana e continua na cidade norte-americana com bandas de música e discursos. Na primeira página do jornal da cidade -Del Rio News-Herald– uma grande foto dos dois prefeitos e respectivas mulheres – os quatro com aparência, nome e sobrenome mexicanos – trocando o abraço da amizade.

Fiquei pensando se algum ilegal não iria se meter no meio do desfile para cruzar a fronteira. Se bem que aqui não há muro, a fronteira é mais que porosa.

Almocei no restaurante da Beth, tipo rancheiro, paredes de madeira, tomadas por uma infinidade de fotos de John Wayne. E segui viagem para Eagle Pass e Piedras Negras. Tomei a rodovia 277, que ruma ao sul margeando o Rio Grande. É uma região de agricultura intensiva. Parece que aqui realizaram o ideal de combinar campo e cidade. Os campos de cultivo convivem com zonas urbanas, as lavouras vão até dentro das cidades. O outro componente sempre presente na paisagem é o trabalhador mexicano. Basta prestar atenção para ver.

No caminho, há um lugar chamado Quemado, uma vila cercada por lavouras e fazendas de criação de gado. Numa mesma semana, Quemado virou notícia duas vezes nos grandes jornais da região. A primeira foi manchete de primeira página no San Antonio Express-News de 27 de outubro: "3 afogados e 4 desaparecidos ao cruzar o Rio Grande". Era um grupo de 26 mexicanos e salvadorenhos que, pela noite, tentaram atravessar o rio num lugar de correnteza forte. Os corpos de duas adolescentes e de um homem haviam sido localizados por um helicóptero da patrulha fronteiriça. Os outros quatro estavam sendo procurados. Podem ter morrido ou ter cruzado com sucesso e estar escondidos nos Estados Unidos.

A outra notícia também deu primeira página no Houston Chronicle de 2 de novembro: "Rancheiros ao longo do Rio Grande fazem vigilância contra invasores". Os fazendeiros reclamam que os mexicanos atravessam a fronteira para roubar gado. Um deles diz que até mesmo um valioso touro de raça foi roubado de sua fazenda e carneado pelos mexicanos. Dizem-se frustrados com a imigração ilegal, tráfico de drogas e criminalidade na região. E exasperados com a falta de pessoal e a inoperância da patrulha fronteiriça. Por isso, decidiram fazer a lei pelas próprias mãos. O jornal publica fotos de vários deles entricheirados, apontando fuzis para o lado mexicano. Seguem-se diversos relatos de tiroteios. Os rancheiros atiram para obrigar os migrantes a voltar ao México. Ou então, se os surpreendem em sua propriedade, rendem-nos e os entregam à patrulha fronteiriça. Contando com o apoio do delegado de polícia de Eagle Pass.

Entidades de defesa dos direitos humanos pediram que as autoridades intervenham antes que alguém seja ferido. Os rancheiros responderam que eles também estão com seus direitos humanos em risco. Dá a impressão de que aqui o "faroeste" nunca acabou.

  Nessa região de Eagle Pass não há muro. O Rio Grande, mais encorpado e de correnteza forte é a única barreira entre os dois países. O rio aqui também é mais bonito, parece menos poluído. Suas águas são verdes, dizem que por causa dos sedimentos que traz de sua passagem pelos canyons da Sierra Madre Oriental. Ao deixar Eagle Pass pela rodovia 83, no rumo de Laredo, vejo pescadores nas suas margens.

Sábado em Laredo, Estados Unidos, é uma festa. Minha primeira imagem ao chegar é de uma fila de caminhões de dois quilômetros, congestionando completamente o trânsito na passagem para a Alfândega mexicana e vizinhanças. Deixei o carro num estacionamento e fui procurar a ponte de passagem de pedestres. Lá estava ela, sobre o Rio Grande, tomada por uma massa humana e, ao lado, uma interminável fileira de automóveis. Os mexicanos estavam vindo aos Estados Unidos fazer compras. Ao lado da ponte, o centro comercial, cheio de animação. Atravessei a ponte e vi o outro lado: o comércio de Nuevo Laredo, no México, estava às moscas.

Se você quer ver de perto como funciona o capital, vá para a fronteira dos Estados Unidos com o México. De segunda a sábado, a fila de trucks – enormes caminhões – é uma constante em qualquer ponto da fronteira. Passam dia e noite. Vêm dos Estados Unidos para o México trazendo peças, componentes e matérias-primas para montagem e acabamento nas maquiladoras. E voltam aos Estados Unidos carregados com os produtos acabados. De acréscimo, levam o trabalho dos mexicanos incorporado aos produtos.

Na sexta-feira, as maquiladoras pagam os salários aqui também. E, no sábado, os trabalhadores vêm em massa aos Estados Unidos fazer compras. Deste lado, as mercadorias são mais baratas. Levam de tudo: farinha de trigo, carne, leite, produtos de supermercado. E roupas, sapatos, relógios, bebidas, jóias, inclusive TVs e outros aparelhos eletrônicos que eles mesmos montaram. E o dinheiro volta para os Estados Unidos.

Não é a toa que as cidades norte-americanas ficam cada vez mais ricas, com miríades de lojas de departamentos, fast foods, vendas de carro e o que você puder imaginar. Os edifícios são majestosos e, em calmas ruas laterais, encantadores bairros residenciais. Respira-se prosperidade. Enquanto nas cidades-irmãs, do outro lado da fronteira, o que cresce é o tamanho da população, que se arranja em favelas nos morros, agravando as carências de infra-estrutura e os problemas sociais. A animação que resulta da presença das maquiladoras não é suficiente para disfarçar a pobreza.

Entretanto, autoridades, empresários e a mídia do México falam de avanços, manifestam otimismo. Em certos setores, como o dos grandes proprietários de terrenos nas vizinhanças das cidades, há até mesmo um clima de euforia pelas grandes transações realizadas e em curso. Empresários dos dois países acabam de promover na Cidade de México a reunião anual "Vision 97", na qual festejaram o sucesso das metas de exportação e importação propostas um ano antes. E anunciaram novos negócios. O prefeito de Nuevo Laredo, por exemplo, voltou da capital anunciando a implantação de mais sete maquiladoras na cidade e a criação de 1.600 empregos.

Por sua vez, a imprensa de Laredo e Nuevo Laredo comemora o fato de ser a maior aduana terrestre da América Latina e a segunda dos Estados Unidos. O movimento de carga é enorme e continua a crescer. Existe uma previsão de que, no ano 2000, passarão por ela 7 mil caminhões por dia. Por isso, os governos dos dois países acabam de estabelecer um acordo para a construção de uma terceira ponte entre as duas cidades e para a ampliação do aeroporto internacional. O transporte de carga aérea bate recordes de crescimento, já é o maior da fronteira. Além disso, há ainda uma ponte ferroviária com grande movimento de carga.

Mas nem só em Laredo há esse clima de entusiasmo. O PIB do México está crescendo – para este ano, se prevê 7% – e as exportações já chegam a 100 bilhões de dólares. Estatísticas mexicanas apontam que, entre 1993 e 1997, o número de empregos no País aumentou de 32,4 milhões para 36,7 milhões, 3% ao ano, ou algo como 1 milhão de novos empregos anuais.

Agora, o outro lado da moeda: trabalho de um estudioso chamado Júlio Bolbinick, divulgado recentemente pela Universidade do México, revela que apesar do crescimento da economia, a maioria da população mexicana continua pobre. Dos 96 milhões de habitantes, 60 milhões permanecem na linha da pobreza. Destes, 27 milhões são tão pobres que quase não têm o que comer; 75 % deles são camponeses e, na maioria, menores de 18 anos.

De Laredo a McAllen, são mais 250 quilômetros que percorri sentindo uma presença mexicana cada vez mais preponderante tanto nos nomes dos lugares – Santo Inácio, Zapata, Rio Grande, Mission – como nas programações das rádios que ia sintonizando no carro, nos tipos humanos encontrados, latinos na grande maioria, falando inglês ou espanhol, tanto faz. E não é só isso, percebi que havia outras feições e novos sotaques por ali: asiáticos. Chineses, tailandeses, filipinos, vietnamitas, indianos. Assim, as linhas da fronteira ficam ainda mais imprecisas.

Não vi muro entre McAllen e a mexicana Reynosa. A fronteira é o Rio Grande. Observo que o rio não é muito caudaloso nem profundo aqui. Do alto, dá para ver afloramentos de pedra, sinais de um leito irregular. Foi em algum ponto desse trecho do rio em McAllen que, em março de 97, morreu o jovem brasileiro Marcelo Mendonça, 26 anos, de São José dos Campos, SP. De início, a família suspeitou de assassinato. Mas tanto a autópsia norte-americana como a brasileira indicaram que foi afogamento. Josias de Castro, outro brasileiro que estava atravessando o rio com Marcelo, confirmou que foi afogamento. Disse que tentou salvar o amigo, mas não teve forças. O corpo do rapaz foi procurado rio abaixo pela Border Patrol por quatro dias. E estranhamente foi encontrado praticamente no mesmo lugar onde ocorreu o afogamento. A suposição da polícia e do consulado brasileiro em Houston, que cuidou do caso, é de que Marcelo pisou em algum buraco e seu pé tenha ficado preso entre as pedras no leito do rio.

Josias foi imediatamente deportado para o Brasil. Não foi o único. Segundo o consulado em Houston, só este ano 19 brasileiros foram apanhados ao cruzar esse trecho da fronteira e deportados.

Do lado mexicano, Reynosa, com 100 maquiladoras instaladas, é outra cidade em explosão demográfica. As estatísticas oficiais falam de 450 mil habitantes, mas o jornalista Arturo Solis, diretor do Centro de Estudos Fronteiriços e de Promoção dos Direitos Humanos, avalia em 750 mil sua população, contando com os imigrantes que vão se instalando em massa pela periferia. Solis é apartidário, mas antigo militante da defesa dos direitos humanos e comanda um escritório em Reynosa.

Para onde está indo o México? – perguntei a ele.

"Lamentavelmente, o México está cada vez mais se integrando aos Estados Unidos, uma prova é que o programa das maquiladoras, que inicialmente era temporário, agora é definitivo, em tal grau que o governo mexicano contabiliza as exportações desses produtos gringos terminados como se fossem mexicanos. É uma coisa absurda, quando sabemos que tudo vem dos Estados Unidos. Essa integração crescente não é só comercial, mas também resulta numa influência política muito grande, de forma que vamos ficando cada vez mais dependentes. Acredito que a população mexicana não está tomando consciência do que está ocorrendo ou já perdeu a capacidade de espantar-se, porque há um clima de apatia.

Ele dá um exemplo: "Na semana passada, autoridades mexicanas assinaram um acordo em Washington para extradições temporárias e ninguém protestou. Em outras circunstâncias, seria um escândalo aceitar entregar à polícia dos Estados Unidos delinqüentes mexicanos que cometeram crimes no México, e agora se aceita que sejam julgados nos Estados Unidos. Isso é incompreensível. Permitem que aviões militares norte-americanos à procura de drogas sobrevoem à vontade o território e entrem e saiam livremente dos aeroportos mexicanos. E não acontece nada, ninguém diz nada. Temos um governo cada vez mais entregue aos interesses dos Estados Unidos e menos defensor dos interesses mexicanos. Isso nós vivemos todos os dias e é triste ver que somos poucos os que falamos e protestamos. O povo não entende bem o que está se passando e, por outro lado, está muito ocupado em sobreviver.

Outro exemplo: "E aqui na fronteira, muitos mexicanos preferem que seus filhos nasçam nos Estados Unidos para serem cidadãos norte-americanos. Então aqui encontramos um grande número de pessoas que nasceram nos Estados Unidos e também são registradas no México. Têm duas nacionalidades. Isso aumenta a ambigüidade. Se lembrarmos que, no passado, nosso país perdeu grande parte do território exatamente por esse tipo de situação, por que agora seria diferente? De qualquer maneira, os Estados Unidos não precisam se apoderar do território do México, porque já se apoderaram dele sem necessidade de invadir-nos. Com a globalização, nosso país está cada vez mais integrado de todos os modos aos Estados Unidos. Até o horário de verão foi unificado para integrar ainda mais as duas economias. A liberdade para o capital é total. Só não há liberdade para os nossos imigrantes..."

De McAllen a Brownsville, a rodovia 83 percorre uma sucessão de áreas urbanas interligadas por um sofisticado sistema viário. São nove cidades vizinhas, abrigando uma população considerável. A região é baixa, de várzeas, ao nível do mar. Eram os meus últimos 100 quilômetros para chegar ao fim da viagem, no Golfo do México.

Aqui a fronteira fica muito porosa. Não é a toa que o governo norte-americano esteja dando ênfase à presença repressiva nesse trecho sul da fronteira. É uma fronteira ainda mais aberta, pois há o mar, o enorme litoral do Golfo. É evidente que o controle aqui é mais difícil.

É uma fronteira violenta: o tráfico de drogas é intenso. Durante o ano de 1966, as forças policiais ianques apreenderam 115 toneladas de maconha, 3,5 toneladas de cocaína, 350 quilos de heroína e 2 milhões de dólares de contrabando. Aqui os polleros, os contrabandistas de gente, também jogam mais pesado. Executam operações sofisticadas para atravessar imigrantes ilegais asiáticos. E cobram 10 mil dólares ou mais por pessoa. Esses imigrantes são trazidos de navio da Ásia até o Golfo do México. E cruzam a fronteira de noite, transportados por adolescentes que os rebocam em câmaras de ar, pelos baixios alagados e lavouras irrigadas.

Fronteira violentíssima, na verdade. O Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Reynosa documentou, entre 1990 e 97, o resgate de 852 corpos encontrados nas águas do Rio Grande. Muitos deles mostravam sinais de terem sido assassinados. Só entre janeiro e setembro de 1997, foram encontradas mortas 37 pessoas.

  O Rio Grande chega ao Golfo do México. A fronteira fica mais imprecisa nas baías e restingas que a maré muda de lugar constantemente

Ao chegar em Brownsville, eu iria enfrentar uma dificuldade: onde é a fronteira? Claro, há uma alfândega, uma ponte internacional sobre um mirrado braço do Rio Grande. No mais, a costumeira linha divisória formada pelo rio se dilui. Represadas nas terras baixas, suas águas entram num estuário e se esparramam por restingas e baías e se misturam com as águas do mar, em Boca Chica, em Brownsville, em Port Isabel.

Penso que essa ambigüidade geográfica coincide com outra, a ambigüidade nacional e racial que se observa aqui. Não é bem um confronto, mas uma tentativa de ser ao mesmo tempo as duas coisas. Esbarra no preconceito norte-americano e se enche de ressentimento. Recusa o confronto, mas infiltra-se como água. E se amplia, não sendo apenas o encontro abrasivo da cultura norte-americana com a mexicana, mas com a cultura latina (há milhões de cubanos, salvadorenhos, dominicanos, porto-riquenhos, guatemaltecos, colombianos, venezuelanos e brasileiros nos Estados Unidos).

Nessa viagem, observei um exemplo dessa emergente efervescência cultural. Como todos os latino-americanos que vivem nos Estados Unidos, os da região festejaram fervorosamente, dias atrás, a vitória do time dos Marlins da Flórida, que conquistou o título de campeão nacional de basebal. Houve um carnaval em Little Havana (Pequena Havana) em Miami. O jornal USA Today abriu sua matéria chamando Miami de cidade melting-pot (caldeirão racial) e usando frases em "espanglês". A maioria dos jogadores dos Marlins são latino-americanos, e o principal deles é cubano recentemente imigrado. Essa vitória foi comemorada com um indisfarçável ar de revanche latina, não só em Miami, mas em todo o Golfo do México e Caribe. E ainda mais porque foi no basebal, o mais tradicional esporte norte-americano!

Uma canção da parada de sucessos das rádios da fronteira é representativa desse "caldeirão" de sentimentos. Chama-se Dos Pátrias (Duas Pátrias) e é cantada pelo conjunto "Tigres del Norte". Começa por um trecho falado em inglês:

"Juro ser cidadão norte-americano, ter uma só pátria, uma só bandeira, um só Deus...". Depois, em espanhol, é um panfleto cantado. O personagem diz que foi para os Estados Unidos deixando no México as sepulturas de seus pais e avós. E que aqui chegou chorando. Veio pra trabalhar, mas que seus direitos foram pisoteados por leis que vão contra a Constituição. "Já não me importo que me tirem meu dinheiro/eu só quero meu seguro de pensão/porém o que importa é que sou novo cidadão e que também me sinto mexicano.../e meus irmãos os centro e sul-americanos, caribenhos e cubanos, têm o sangue tropical/ Que se respeitem os direitos de minha raça/cabem duas pátrias em um mesmo coração".

E no final, há um trecho declamado: "o foguete estourou forte na tarde do juramento/do meu coração brotava uma lágrima que me queimava por dentro/duas bandeiras me confrontavam/uma, verde, branca e vermelha, com a águia estampada/a outra, com seu azul cheio de estrelas, com suas raias vermelhas e brancas cravadas/a bandeira dos meus filhos à negra me contemplava/não me chamem traidor porque as duas pátrias eu quero/Lá ficaram meus antepassados, aqui estão meus filhos/ por defender meus direitos não posso ser chamado traidor..."

A música fala de um sentimento, de uma atitude com a qual esbarrei o tempo todo, seja entre os migrantes ilegais ou entre os intelectuais e os defensores dos direitos humanos, que é uma pretensão dos mexicanos a um "direito" seu de entrar nos Estados Unidos, de poder viver tanto de um lado quanto de outro da fronteira. A mistura de um direito ascenstral, como que uma reação à usurpação do território, como que uma compensação pela derrota, pela exploração nas lavouras e trabalhos humildes, ou pela contribuição de sua força de trabalho à prosperidade norte-americana.

Como um direito do escravo, o direito do oprimido. É como um espinho cravado no corpo, que transforma a rotina de viver numa tragédia grega que se repete todo dia. Nós, do Brasil, não temos a menor idéia do que é esse conviver para sempre com um gigante, deitar e acordar com ele, sendo o outro lado do Destino Manifesto, o lado do subjugado.

Viajando da fronteira para Houston - meus últimos 500 quilômetros por magníficas superestradas - para pegar o avião para o Brasil e voltar ao nosso próprio tipo de barbárie, vou lembrando do livro do escritor mexicano Carlos Fuentes, que acabei de ler, La Frontera de Cristal. O livro é sobre esse direito difuso, sobre essa trágica ambigüidade, esse ser partido em duas metades:

"O que é daqui e também de lá. Porém, onde é aqui e onde é lá? Não é o lado mexicano o seu próprio aqui e lá, não o é o lado gringo, não tem toda essa terra seu duplo invisível, sua sombra alheia, que caminha a nosso lado como cada um de nós caminha acompanhado do segundo que o ignora?"

Um de seus personagens diz: "não sou mexicano. E não sou gringo. Sou chicano. Não sou gringo nos Estados Unidos e mexicano no México. Sou chicano em todos os lugares. Não tenho que assimilar nada. Tenho minha própria história".

A última frase do livro é uma adaptação da expressão lapidar do ditador Porfírio Diaz que define tudo sobre a relação, esta sim, carnal, inevitável, inescapável, entre os dois países: "Pobre México, pobre Estados Unidos, tan lejos de Dios, tan cerca el uno del otro".

Para saber mais

Leituras e endereços que ajudam a conhecer mais a problemática da fronteira México-Estados Unidos, o NAFTA, Acordo de Livre Comércio entre EUA-México-Canadá:

Runaway América – Empregos e fábricas dos Estados Unidos em Mudança – De Harry Browne e Beth Sims – 1993 – esource Center Press - Box 4056 - Albuquerque - New Mexico 87196.

The Great Divide – O Desafio das Relações EUA-México nos anos 90 - De Tom Barry e outros. 1994. Grove Press – 841 Broadway – New York, NY 10003.

Zapata’s Revenge - Livre Comércio e a Crise da Agricultura no México. - De Tom Barry - 1995 - South End Press, Boston, Massachusets.

La Frontera de Cristal – Carlos Fuentes – Ed. Alfaguara – Cd. Mexico.

Border Lines – Boletim mensal sobre assuntos de fronteira – The Interhemisferic Resource Center – 815 Black Street – Silver City – New Mexico 88062 .
http://lib.nmsu.edu/subject/bord/bordline

Grupo Pueblo de Estudos Sociais – Cid. do México.
E-mail: pueblo@laneta.apc.org

Casa de La Mujer - Grupo Factor X – Tijuana – Baja California – México. E-mail: factor@mail.tij.cetys.mx

Centro de Apoyo Al Migrante - Centro Comercial "Correos", local nº 26 – Tijuana – Baja California . Centro – B.C. 22000.

Centro de Estudios Fronterizos y de Promocion de los Derechos Humanos – Reynosa – Tamaupilas.
E-mail: cefprodh@giga.com

Frente Autentico del Trabajo – E-mail: rmalc@laneta.apc.org

American Friends Service Comitte – US-Mexico Border Program . P.O Box 126147 San Diego, California 92112. E-mail: afscilemp@igc.org


Música de fundo em arquivo MIDI (experimental):
"Sanfona", de Egberto Gismonte. Seqüência MIDI: Egberto Gismonte

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Belo Horizonte, 15 de novembro de 2003

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