O muro americano
Viagem pela fronteira do mundo global
(continuação)
Reportagem e fotos de Carlos Alberto de Azevedo
As duas Nogales
O Velho Oeste é aqui. Pelo caminho, bares com chifres de boi na fachada, carroções e cactos na decoração. Os homens usam chapéu de caubói, mas não se vêem cavalos. Foram substituídos pelas camionetes. No rádio do carro, música country ou música mexicana. É a fronteira. Cinqüenta quilômetros antes de Nogales, já dou com uma daquelas camionetes reforçadas da Border Patrol. Primeiro sinal de que a imigração ilegal é forte nesta área.
Nogales, Arizona,
nos Estados Unidos, quase se esconde de quem está chegando. É uma cidade de casas de teto baixo, típicas do deserto, semi-ocultas pela vegetação. Nas ruas, não se avista ninguém. Estaciono o carro. Caminho cem metros. Passo pela Alfândega, estou no México, fácil assim. |
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Nogales, Sonora, é uma cidade pobre, com um comércio de recuerdos para turistas ianques. E muita gente pelas ruas desempregados, biscateiros, camelôs. Aqui o mesmo tipo de muro de chapas de metal reaparece reforçado, agressivamente equipado com câmeras de TV e sensores, separando as duas cidades de ponta a ponta. É todo cimentado por baixo, não dá para cavar como em Tijuana. Mas logo vejo uma passagem: os imigrantes sobem num galho de uma árvore próxima e ele se verga por cima do muro. Dali, é um pulo. | Cena do cotidiano em uma feira de artesanato em uma das duas Nogales. Esta é a do lado mexicano da fronteira |
Há um túnel de águas pluviais, largo e com mais de um quilômetro de extensão, que começa do lado norte-americano e termina do lado mexicano. Os ilegais costumam seguir por ele. Conta-se que, certa ocasião, uma chuva repentina provocou uma enxurrada que surpreendeu um grupo dentro do túnel. Morreram todos afogados.
Andando por um bairro popular da Nogales mexicana, encontro uma casinha com uma inscrição na fachada: Partido da Revolução Democrática. Converso com alguns dirigentes locais do partido. Sugerem que eu procure o Centro local de Apoio ao Migrante. Um dos advogados do Centro, Enrique Burgos, muito falante, me informa que a média é de 150 imigrantes ilegais deportados por dia. Mas que assim mesmo muitos conseguem passar. Vou até o portão por onde a "migra" deporta os ilegais. E descubro um grupo de rapazes que acabou de "voltar". Contam que já haviam caminhado um dia pelo deserto quando foram capturados. Estão sujos e cansados. Ficaram detidos por uma noite. Foram maltratados, humilhados? Respondem que não. Vão tentar de novo? "Sim, claro. Já chegamos até aqui, vamos adiante. Queremos trabalho", diz o mais desembaraçado. Não interessa trabalhar nas maquiladoras de Nogales? "Não, porque o salário é de fome", diz outro. E ficam a conversar com o representante do Centro de Apoio ao Migrante, que lhes oferece alojamento, comida por alguns dias e passagem de ônibus de volta às suas casas no interior. Mas por que voltar, se não há trabalho?
Uma coisa está me intrigando. Pergunto a Enrique Burgos: como o PRD, um partido de oposição, consegue recursos para instalar esses centros pela fronteira e ajudar os imigrantes? Ele diz que a ajuda aos imigrantes é obtida junto às prefeituras e ao Serviço Nacional de Imigração. Mas que a implantação desses centros e diretórios pelo país é fruto de uma opção do PRD. O partido decidiu gastar só a metade dos recursos do Fundo Partidário em propaganda eleitoral. A outra metade está sendo destinada a manter inúmeras entidades de defesa dos direitos da população mais pobre e migrantes.
Tombstone, a cidade do faroeste
De Nogales a Tombstone, são 80 quilômetros pela rodovia 82, uma estrada secundária, mas de boa qualidade. A Tombstone de hoje é uma cidade inventada pelo cinema. O episódio envolvendo os irmãos Earp e o "OK Corral" ocorreram na Tombstone na década de 1880. Essa cidade, que hoje os turistas visitam em massa todos os dias, é filha do mito que Hollywood criou em torno daqueles fatos. Duas ruas, cinco travessas, 300 metros de lojas de roupas de caubói, de todo tipo de recuerdos, um cinema onde se exibem filmes de faroeste todo o tempo, bares que logo de manhã (às dez horas já há gente bebendo) e onde se pode fumar à vontade. A única proibição, que se vê por toda parte, embora verdadeira, adquire tom de ironia: não se pode andar armado.
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Carroções puxados a cavalo levam a um tour pelas vizinhanças. E no fim da rua, lá está ele, o lendário OK Corral, com cara de prédio antigo. Mas aqui tudo foi reconstruído e maquiado para receber os turistas que chegam. Os irmãos Earp superaram Billy The Kid, Bufalo Bill etc e se tornaram o maior mito da ocupação do Oeste. |
E nada poderia se ajustar melhor ao caráter rapinante da ocupação do Oeste do que a elevação dos irmãos Earp ao pódio de seu maior mito. Os Earp, Doc Holiday e Bat Masterson formavam um bando de malfeitores. Estiveram envolvidos em pelo menos um assalto à diligência. Eram jogadores de baralho itinerantes, bêbados, pistoleiros de aluguel, conforme o livro The Earps Brothers of Tombstone, de Frank Walters, editado pela Universidade de Nebraska.
Estando aqui me surpreendo ao ver que várias dessas cidades que ficaram famosas por causa dos filmes de faroeste estão na própria fronteira com o México: Yuma, Nogales, Tombstone, Laredo. Nos filmes isso é quase sempre omitido. Como também não mostram que a maioria da população desses lugares é de origem mexicana, uma maioria que não é fruto apenas da imigração. Todo mundo sabe, mas nem sempre lembra que o sudoeste dos Estados Unidos Califórnia, Arizona, Novo México pertencia ao México até 1848, quando foi anexado por força de uma guerra. E também o imenso Texas, que já havia sido tomado alguns anos antes.
Roberto Martinez, advogado de San Diego e cabeça do American Friends Service Commitee, uma respeitada entidade de defesa dos direitos humanos da Califórnia, havia me chamado a atenção para isso:
"O absurdo dessa discriminação contra os mexicanos é que nós estávamos aqui antes. Eu, por exemplo, sou um autêntico cidadão norte-americano. Há seis gerações, minha família está na Califórnia. Nós não viemos do México. O México era aqui, houve a guerra, a Califórnia tornou-se parte dos Estados Unidos e nós, como milhares de outras famílias mexicanas, continuamos a viver aqui. No entanto, fomos sempre discriminados, eu, desde que me lembro, na escola, no trabalho, tenho sido discriminado".
Martinez aponta o lado oculto da ocupação do Oeste: a violência dos imigrantes de origem européia que vinham do Leste para tomar as fazendas dos rancheiros mexicanos que viviam ali. Isso virou uma "limpeza do terreno" depois da guerra de 1848. Lembra que a Border Patrol foi criada em 1924, mas que no passado era pior. Havia os Rangers, cuja função era massacrar fazendeiros mexicanos e índios e expulsá-los para além das novas fronteiras.
Seguindo pela rodovia 80, logo cheguei a Douglas, uma simpática cidade num cantinho do Arizona, fronteira com Água Prieta, no Estado mexicano de Sonora. Aqui o muro está em construção. Só os pilares estão implantados. Os dois países estão separados apenas por um valo de águas pluviais. O que obriga a uma intensa atividade da Border Patrol. Vi três viaturas percorrendo incessantemente a linha de fronteira. Um dos patrulheiros me disse que a construção do muro está atrasada, já devia estar pronta há algum tempo. E lamenta porque isso aumenta o trabalho, 24 horas por dia. Mas admite que mesmo assim muita gente passa por ali. "Nós capturamos uns 30 por dia".
O drama dos que já trabalham do lado americano
A menos de 100 metros de distância, vejo um grupo de rapazes do lado mexicano. Eles acompanham atentamente os movimentos dos carros da patrulha. Atravesso a fronteira e vou ao encontro do grupo. Próximos à Alfândega, dois deles estão conversando. Um encoraja o outro enquanto fica de olho na patrulha: "Dá pra cruzar agora. Vai. Toma decisão e vai", fica insistindo. Deve ser um pollero. O outro vacila. E quando me vê fotografando, desiste de vez. Chama-se Giovani, tem 23 anos. Vive como ilegal nos Estados Unidos, veio visitar parentes e está voltando. Veste roupa limpa e usa gel no cabelo. Conta que está esperando a legalização dos papéis e enquanto isso vai tentando voltar como ilegal. Com o processo de legalização em curso, decidiu visitar parentes no México. Na volta, tentou cruzar legalmente e foi impedido. "Vou passar hoje, a qualquer momento, agora ou mais tarde", diz. Perto dele, há outros rapazes claramente com a mesma intenção. Há algum nervosismo, mas conversam e dão risada. Falam comigo em "espanglês". Dão as costas quando tento fotografá-los, mas não me hostilizam.
Por que tentam passar assim pertinho da Alfândega e não vão mais longe, lá perto das montanhas? Riem. Giovani explica: "Lá a gente sai no mato, não há ônibus por perto, e sim há bandidos que nos assaltam. E, também, se ficamos andando por lugares isolados, é mais fácil de a "migra" nos pegar.
Lembra que, na primeira vez, passou com apoio de um coiote (ou pollero). "Fui levado para uma casa. Mais tarde me puseram num carro e me levaram para Phoenix. Fiquei em outra casa até arranjar um lugar meu". Giovani gosta de trabalhar nas grandes cidades, como Phoenix, Tucson. Faz entregas para supermercados ou de comida pronta nas casas (o chamado delivery). Acha bom poder trabalhar até doze horas por dia e ganhar de 50 a 80 dólares. "Consigo ganhar 300 dólares por semana, de oito a dez vezes mais que no México, onde não passo de 250 pesos por semana (1 dólar igual a 8 pesos).
Enquanto conversamos, as cenas vão se desenrolando à nossa frente, como num filme. As viaturas da patrulha passam para lá e para cá. Dois patrulheiros vêm até o portão trazendo um rapaz. Um deles abre o portão e faz o rapaz passar para o lado mexicano. Mais um deportado. O rapaz vem em nossa direção. É conhecido de Giovani. Cumprimentam-se familiarmente, perguntam por parentes. O rapaz se despede dizendo que amanhã vai cruzar de novo.
Brinco que cruzar a fronteira parece um esporte, o esporte nacional do México. Giovani contesta. Diz que vão por necessidade, muitos nem vão. Preferem ficar na pobreza do que enfrentar a amolação, a humilhação e a perseguição que sofrem nos EUA.
Então, por que você não fica trabalhando no México? - pergunto.
"Porque no México os patrões querem ganhar tudo, você trabalha para eles e não pra você. Nos Estados Unidos, o que você ganha é seu".
Comenta de novo os baixos salários no México. Faz uma comparação simplória para explicar a diferença: "No México, com 200 pesos, você não compra uma calça. Nos EUA, com 200 dólares, você compra dez calças. Com 300 pesos, mal dá para fazer a feira. Com 300 dólares, dá para fazer muitas feiras".
Outra cena: um homem vai até a vala que separa os dois países. É um pollero e observa a patrulha. Acena chamando dois rapazes. Eles vão ao seu encontro. Começo a fotografar. Ele manda que corram para dentro da vala. Eles obedecem, correndo agachados. Faz sinal para que aguardem um pouco. Em seguida, manda que subam pela borda oposta e parem quase no topo, ainda agachados. Três carros da patrulha estão estacionados a uns 200 metros. Fora dos carros, os policiais batem papo ao sol do meio-dia. O pollero dá a ordem: "Corram!" E eles correm à toda velocidade até sumirem atrás da parede de um armazém. Tudo aconteceu muito rápido. Olho para os policiais. Continuam a conversar calmamente. Que coisa! Não viram nada? Até parece combinado. É como se eles dessem uns intervalos para os ilegais cruzarem. Procuro o pollero, mas ele evaporou. Vou embora deixando-os, policiais e imigrantes, naquela estranha rotina.
Índios, página virada na história
Continuando pela rodovia 80, chego na divisa entre Arizona e Novo México. A paisagem é grandiosa. Largas pradarias com criação de gado em pastagens irrigadas artificialmente. A tarde vai sendo iluminada por uma luz dourada. Ao fundo, altas montanhas. São as Montanhas Chiricahua, nome de uma tribo de índios guerreiros que faziam parte do povo apache. Aqui viveram milhares de índios por muitas gerações. Agora, não se vê ninguém ao longo dessas enormes extensões de terra. De vez em quando, gado pastando.
À margem da estrada, uma placa indica: "Skeleton Canyon". Estaciono no meio da campina silenciosa, ao lado de um obelisco de pedra de uns 4 metros de altura. E fico sabendo que aqui se deu o último combate entre o Exército dos Estados Unidos e os índios. O monumento marca o lugar onde Gerônimo, o último grande chefe apache, rendeu-se ao general Nelson Miles, em 6 de setembro de 1886. Na placa, se lê: "A rendição de Gerônimo em Skeleton Canyon nesta data histórica encerrou para sempre as guerras indígenas nos Estados Unidos". |
Monumento à rendição do chefe apache Gerônimo, no Skeleton Canyon |
Terminava ali um período de trinta anos de violência em que todas as tribos indígenas dos Estados Unidos foram massacradas e subjugadas pelo exército norte-americano e por grupos de mercenários. "Foi uma época de cobiça, audácia, sentimentalismo, exuberância mal orientada e de uma atitude quase reverente para com o ideal de liberdade pessoal, por parte dos que já a possuíam", conforme escreveu Dee Brown em seu famoso livro Enterrem Meu Coração na Curva do Rio.
No final desse período, a cultura e a civilização do índio americano estavam destruídas. Os remanescentes das tribos foram recolhidos em reservas. E se produziu esse imenso vazio que avisto daqui, ocupado apenas por bois. É dessa época que vieram praticamente todos os mitos do Velho Oeste. A partir de então, todo o território do País estava "livre" para a realização do "Destino Manifesto", a afirmação da superioridade do homem branco. Afirmação que continuou pelo século 20, estendendo-se por todo o mundo. No México, que no século 19 foi traumatizado pela perda de dois terços do seu território, esse Destino Manifesto se traduz atualmente pela "integração" de sua economia à economia norte-americana. É um processo de tal forma intenso e irresistível que um jornalista de Tijuana, Enrique Sanchez Diaz, diretor do jornal El Mexicano, o compara a uma segunda guerra de anexação, "agora, sem armas", diz. Esse processo pode ser visto a olho nu nas cidades da fronteira.
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Música
de fundo em arquivo MIDI (experimental):
"This masquerade"
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