O muro americano

Viagem pela fronteira do mundo global
(continuação)

Reportagem e fotos de Carlos Alberto de Azevedo

Rigor americano contra o imigrante

O movimento de pessoas ao longo dos 3.140 quilômetros de fronteira entre Estados Unidos e México oferece um espetáculo único: a linha fronteiriça foi cruzada 280 milhões de vezes durante o ano de 1996.
Claro que a maioria foi de pessoas que vão e vêm todos os dias, moram de um lado e trabalham de outro, ou vão às compras ou fazer visitas temporárias. Só que, no meio dessa gigantesca pororoca, nadam outros peixes: tanto os que vão como imigrantes autorizados, e são muitos, quanto os que vão ilegalmente, um número desconhecido, mas que também são muitos. E há peixes ainda mais incômodos, que são os contrabandistas e os traficantes de drogas. De qualquer forma, em termos de movimentos fronteiriços esse pode ser chamado o maior espetáculo da Terra.  
No deserto do Arizona (Sonora, para os mexicanos), a fronteira é demarcada pelo canyon do Rio Grande (Rio Bravo del Norte para os mexicanos)

Esse estudo binacional divulgado em outubro de 97 pelas autoridades de imigração dos dois países avaliou que há 7,3 milhões de pessoas nascidas no México vivendo nos Estados Unidos. Dessas, 4,9 milhões são migrantes legais, residentes autorizados. E 2,4 milhões são migrantes ilegais, clandestinos. Acrescente-se que há 11 milhões de pessoas de origem mexicana nascidas nos Estados Unidos, os chamados "chicanos", e chega-se a algo em torno de 7 por cento da população dos Estados Unidos. Por causa dos laços de parentesco, a imigração autorizada aumentou velozmente nos últimos anos, chegando a 233 mil pessoas em 1996. O número dos que entraram sem autorização é desconhecido, mas sua grandeza pode ser inferida no número de detenções durante a tentativa de cruzar a fronteira: 1,3 milhão em 1995 – se bem que essa contagem considera o indivíduo que tenta passar várias vezes.

Entre os anos de 1990 e 1996, entraram nos Estados Unidos 1,9 milhão de mexicanos, uma média de 315 mil por ano. Calcula-se que aproximadamente 630 mil entraram ilegalmente. E a pressão continua: calcula-se que, ao longo de toda a fronteira, nada menos que 8 mil pessoas tentam diariamente cruzar ilegalmente a fronteira.

Compro um jornal, o El Mexicano, de Tijuana. A matéria de primeira página diz que está diminuindo a imigração ilegal na Califórnia, por conta do reforço da vigilância dos EUA. Os números servem para dar idéia do volume da invasão diária e do porte da chamada "Operação Guardiã".

Diz a matéria que, entre janeiro e agosto de 1995, a Border Patrol deteve 429.703 imigrantes não documentados, só na Califórnia. Uma média de 1.760 detenções por dia. O número teria caído para 294.444 entre janeiro e agosto de 97 e a média diária de detenções, para 1.200. Uma redução de 31 por cento.

As informações são das autoridades americanas e mexicanas, divulgadas por Geraldo Delgado Cruz, delegado regional do Instituto Nacional de Migração do México em Tijuana. Em 1995, a média de tentativas de passagem que um mesmo imigrante fazia era três, o que significa que, naquele ano esse bate-volta envolveu 143 mil pessoas. Com o aumento das dificuldades para a travessia, a média subiu para oito tentativas por pessoa, o que significa que, de janeiro a agosto de 1997, foram "devolvidas" 36.800 pessoas. Naturalmente, o número dos que conseguem passar é desconhecido. Mas, segundo o Centro de Apoio ao Migrante, do Partido da Revolução Democrática (PRD) em Tijuana, ainda passam muitos. Calcula-se que a patrulha da fronteira consiga capturar um terço dos que tentam atravessar. Por aí se tem idéia do volume da legião que diariamente procura fazer a travessia, algo em torno de 3 mil pessoas, só na Califórnia.

As crescentes dificuldades para atravessar a fronteira têm provocado o aumento do número de mortes de imigrantes. Do início de 1993 a agosto de 1997, foram 239 mortes na fronteira californiana: 165 em San Diego e 74 em Caléxico, cem quilômetros para o Leste. Em San Diego, as causas principais foram atropelamentos nas free ways e afogamentos no mar. Em Caléxico, os rigores da região inóspita.

A concentração de forças e recursos repressivos na área de Tijuana e San Diego fez com que o fluxo migratório se deslocasse para a região de Caléxico (a cidade norte-americana) e Mexicali (a cidade-irmã mexicana), que ficam em região montanhosa e de deserto. A maioria das detenções agora se dá nessa zona de maior risco. A travessia por trilhas na zona desértica e montanhosa tem resultado em grande aumento do número de mortes. A caminhada até lugares mais seguros chega a levar trinta horas. Durante o dia, a temperatura vai a 50 graus centígrados e não há água. À noite, cai drasticamente até próximo de zero grau, com ventos inclementes. Como quase não há habitantes por ali, também não se consegue obter comida.

Assim, entre 1993 e 96, foram constatadas 41 mortes na região de Mexicali e Caléxico, uma média de 10 por ano. Mas em 97, só até agosto, já haviam ocorrido 33 mortes ali, um aumento projetado de 300 por cento.

E, ao longo dos 3.140 quilômetros de fronteira, quantos serão os mortos? O número total é incerto. Não há possibilidade de estatísticas precisas. Quantos terão morrido nas montanhas, ou deserto, cujos corpos jamais foram encontrados? A Universidade de Houston fez um estudo considerado o mais completo sobre o assunto. Nos últimos quatro anos, teriam morrido pelo menos 1.185 imigrantes durante a tentativa de cruzar a fronteira e chegar a porto seguro. Muito mais do que as baixas dos que tentavam atravessar o Muro de Berlim, onde, em cerca de 30 anos, morreram 807 pessoas.

Entrevistada sobre essas tragédias, Doris Meissner, a chefe do Serviço de Imigração dos Estados Unidos, declarou que lamentava as mortes dos imigrantes ilegais, mas que o governo norte-americano levará até as últimas conseqüências a aplicação da nova política de imigração. Essa política começou a ser aplicada há três anos, em outubro de 1994, com a criação da "Operação Guardiã" para controlar a imigração ilegal na região de San Diego e Tijuana. Depois, foi criada a "Operação Rio Grande", para fazer a mesma coisa na fronteira do Texas. Esses esforços fazem parte de um plano estratégico de prevention through deterrence (prevenção por meio da intimidação) anunciado pelo presidente Clinton em julho de 1994 e cujo objetivo é conseguir o controle efetivo dos 3 mil quilômetros de fronteira com o México.

Em julho de 1997, a mesma Doris Meissner anunciara que a maior parte dos novos recursos seria destinada à fronteira sul do Texas, em Laredo, McAllen e Brownsville, mas sem deixar de reforçar o muro em San Diego, Nogales e El Paso, pontos aos quais tem sido dada maior ênfase até agora. Um reforço apoiado na combinação de nova tecnologia e aumento do contingente. Estão sendo contratados novos agentes da patrulha fronteiriça, inspetores dos pontos de entrada, investigadores, analistas de informações e oficiais de imigração. Uma grande variedade de equipamentos de alta tecnologia também está sendo providenciada: aparelhos de infra-vermelho de longo alcance, câmeras de TV e monitores com capacidade para "ver" no escuro, sensores, luzes, rádios de alta potência e sistema de identificação biométrica.

Congresso autorizou a ampliação da Border Patrol para 10 mil agentes, número a ser alcançado em 2001. A ampliação já vem ocorrendo. Só no Texas e Novo México, o número de agentes passou de 1.756 para 2.693 entre 1993 e 97, mais de 50 por cento. E vai continuar crescendo. Uma grande quantia, 3,1 bilhões de dólares, foi destinada à operação.

Fui ao encontro de Raul Ramirez, um dos responsáveis pelo Centro de Apoio ao Migrante em Tijuana. O Centro é um órgão da Secretaria de Direitos Humanos do PRD, Partido da Revolução Democrática, e funciona numa sala do centro da cidade. Dá apoio aos imigrantes, põe advogados à disposição, ajuda-os a voltar a seus lugares de origem. Parte do trabalho é entrevistar todos os imigrantes ilegais capturados pela "migra", no momento em que são deportados. Raul me deu cópias de numerosos depoimentos relatando violências, humilhações e outras irregularidades cometidas contra imigrantes pela polícia norte-americana da fronteira, pelos fiscais aduaneiros e pela polícia mexicana.

Uma mulher capturada em Tijuana: "...cruzamos aproximadamente às duas da manhã por um buraco por baixo do muro. Para não sermos descobertos pela migra, decidimos ir de joelhos pela pedraria até onde fosse possível. Avançamos assim com grande dificuldade, muito frio e os joelhos feridos, até quatro e meia da manhã... Então, os agentes da migra nos pegaram. Riam e caçoavam da gente. Estavam acompanhando tudo desde que passamos pelo muro. Parece que têm uma lente especial para ver na escuridão. Deixaram que nos arrastássemos de joelhos para nos humilhar e divertir-se às nossas custas. No escritório, ficharam e fotografaram a gente. Pedimos algo para fazer curativo nos joelhos, mas um oficial negou dizendo que aquilo não era um hospital".

Pego outra ficha ao acaso: "7 de abril de 1997. Jorge Godich Hurtado, 56 anos, detido ao cruzar a fronteira em San Isidro. Agente da patrulha fronteiriça atirou-o de um barranco. Esteve oito dias hospitalizado em San Diego, com fratura da clavícula esquerda. Teve parada cardíaca. Ao sair do hospital, foi deportado de madrugada, sem ser registrado no Centro de Detenção. Assaltado em Tijuana".

Outra ficha: "21 de agosto de 1997. Celestino Maldonado Eleuterio, 36 anos. Detido nas montanhas, perto de Tecate, região de Tijuana. Agente da patrulha fronteiriça prendeu-o, golpeou-o na cabeça com o punho. Insultou-o e o ameaçou de morte. No dia seguinte, foi deportado".

A polícia mexicana, mais arbitrária e corrupta, persegue, espanca e rouba os migrantes. Diz uma ficha de 14 de maio de 1997: "Eduardo Peinado Aguilera, 26 anos, recém chegado a Tijuana, caminhava pela rua quando foi interceptado por policiais. Bateram-lhe no rosto para que não pudesse identificá-los. Insultado. Tomaram-lhe a carteira, rasgaram sua certidão de nascimento, seu título de eleitor do Estado de Guanajuato, o certificado militar e a carteira de motorista. E ficaram com 350 pesos (o equivalente a 45 dólares)".

Vejo fichas de detenção de mexicanos que viviam nos Estados Unidos sem documentação e que, deportados, foram forçados a separar-se da família:

"18 de junho de 97. Jesus Machuca Jaramillo, 29 anos, detido em Los Angeles. Em 13 de junho, atende convocação ao escritório da imigração, onde tem cancelado o cartão provisório de trabalho. Sob pressão, assina documento de "saída voluntária" e é deportado de imediato. Deixou em Los Angeles a esposa grávida e dois filhos nascidos nos EUA. Tinha 12 anos de residência no país."

"1 de julho de 97. Susana Santos Lopes, 34 anos, detida em Santa Ana, Califórnia. Trabalhava há dois anos na plantação de tomate, ganhando 4,5 dólares por hora. Em 30 de junho, o Serviço de Imigração a deteve no local de trabalho. Foi deportada imediatamente. Disse aos agentes que tinha dois filhos esperando por ela, em casa, nascidos nos EUA, mas não lhe deram atenção".

Senti um arrepio. Páginas e páginas de fria violência contra pessoas humildes. Humilhações, desterros, separação forçada de famílias. Onde já vimos esse filme? Raul Ramirez chama atenção para o rigor das novas leis de migração nos Estados Unidos:

"Legalizaram o ilegal. Idéias conservadoras, o tradicional discurso antiimigrante foi transformado em lei. É uma manobra para agradar o eleitorado norte-americano, e ao mesmo tempo, lançar em descrédito e preconceito a população imigrante no país. Antes, se um imigrante cometesse uma falta administrativa - uma agressão ou até mesmo uso de drogas - podia contratar um advogado para se defender. Ia à Justiça, o caminho usual. Agora, não. Mesmo faltas menores se converteram, pela lei de setembro de 1996, em delito federal, felonia. A pessoa é sumariamente expulsa, sem julgamento. E criou-se a punição retroativa. Se a pessoa vai a um órgão do governo para obter um documento e, ao levantarem sua ficha, for encontrada alguma falta cometida cinco ou dez anos atrás, será expulsa do País."

A Procuradora Geral do Governo, a poderosa Janeth Reno, deu entrevista em 31 de outubro anunciando que, em 1997, até aquela data, 112 mil imigrantes que viviam ilegalmente nos Estados Unidos haviam sido deportados. Um aumento de 62 por cento sobre 1996. Outros 90 mil, ameaçados de processo por infringir a nova legislação, deixaram o país "voluntariamente". Reno disse que "a estratégia de criar uma rede de vigilância tanto na fronteira como nos lugares de trabalho está funcionando".

A conseqüência, segundo Raul Ramirez, é que a comunidade de imigrantes está sob um clima de angústia, aterrorizada:

"Muita gente está mergulhando na clandestinidade. Porque há cerca de um milhão de pessoas que estão há muitos anos nos Estados Unidos, não se legalizaram em 1986, quando houve uma anistia geral, e agora temem ir a um escritório do Serviço de Imigração para se legalizar e, em vez disso, serem sumariamente expulsas. Isso tudo é perigoso. Cria um cidadão de segunda classe. É uma legislação que contraria as tradições desse país cuja grandeza foi construída por imigrantes".

Raul conclui: "Eles sabem que erraram a mão, que exageraram. Dificilmente voltarão atrás, mas estão receosos pela repercussão. Doris Meissner e o seu pessoal do Departamento de Imigração têm feito grandes esforços para evitar que cresça o impacto negativo dessa política junto à opinião pública. Eles temem um movimento de mobilização em defesa dos direitos humanos como ocorreu há dois anos contra a lei de imigração discriminatória na França."

Temendo ou não qualquer impacto, no final de outubro, o Congresso votou a favor do adiamento da expulsão em massa dos que não houvessem conseguido o Green Card até 7 de novembro, algo em torno de um milhão de imigrantes. Pagando uma multa de mil dólares, essas pessoas poderão agora aguardar nos Estados Unidos a resolução do processo de sua legalização. Mas todos os que estiverem ilegalmente no país deverão se apresentar à Imigração até 14 de janeiro de 1998. Quem não se apresentar...

Os astronautas que foram à lua viram de lá a Muralha da China, que tem mais de 3 mil quilômetros. Lembrei disso quando o avião decolou de San Diego rumo a Tucson, no Arizona. Ele fez uma volta sobre Tijuana e eu pude ver nitidamente o muro saindo das águas do mar, separando as duas cidades e seguindo em linha reta até as montanhas. Ali começam os 3 mil quilômetros da muralha americana ainda em construção. Quem sabe algum dia um astronauta também a veja da lua...

A caminho de Nogales

Aluguei um carro em Tucson e segui para a fronteira na região do deserto de Sonora. Fui pelas rodovias 86 e 85, atravessando as reservas indígenas de San Xavier e Papago: o que vi de passagem, foram duas aldeias miseráveis em meio a grandes cactos e cascalho grosso. Cheguei à fronteira, à cidadezinha de Lukeville, de frente para a mexicana Sonoita. Entre elas, o muro, aqui convertido num alto alambrado que se estende até a montanha mais próxima. Era domingo e havia muitos norte-americanos com seus trailers e camionetes voltando do fim de semana no deserto mexicano.

Não conhecia um ar tão seco. Sentia os lábios e a pele ressecados. As costas das mãos e os braços, que estavam expostos, ficaram engelhados, formaram-se pequenas escamas. Pela manhã, fez frio, mas, no meio do dia, o sol e o vento forte haviam eliminado qualquer umidade. Compro água numa loja 24 horas. Falo do calor com o caixa e ele me responde que estou com sorte por vir no outono. "No verão, aqui é o inferno".

O vento levantava poeira e arrastava rolos de capim seco – os teembleweeds –, como nos filmes. Não havia quase ninguém pela rua, mas as peruas da Border Patrol estavam. Pensei nos imigrantes ilegais que ousam passar pelo deserto. O mais difícil depois de atravessar a cerca é caminhar por esses vazios até lugares habitáveis. As cidades estão longe – Phoenix a 200 km e Tucson a 250 km. Mas eles sempre conseguem chegar lá. Tem gente interessada em que cheguem. Por exemplo, ninguém revista os trailers dos norte-americanos... Há tratos assim: "você atravessa o muro e eu o apanho mais adiante numa curva da estrada". Que patrão americano não almeja um empregado baratinho e obediente?

A caminho de Nogales, tomo a rodovia 19 e depois a 89. Os nomes por aqui são todos espanhóis: San Antonio, Encanto, Santa Cruz. Ou então, nomes indígenas: Auto Peças Cochise. A vegetação é mais rala que a do nosso sertão nordestino. Há um capim que lembra o barba-de-bode que, talvez pela aproximação do inverno, está secando, ficando amarelo. A imagem é bonita. Ao fundo, montanhas escarpadas, refletindo o sol da manhã. Largas distâncias, até onde a vista consegue alcançar, e a cor predominante é um verde-escuro, acinzentado.

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Música de fundo em arquivo MIDI (experimental):
"Espírito de verão", de Eumir Deodato

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Belo Horizonte, 15 de novembro de 2003

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